os pretos, a maior parte deles junto ao refeitório das praças na mira de restos, quando
derivado às chuvas o aviãozeco
(não mosca, pássaro)
que trazia a comida e o correio não aterrava na pistazinha lá em cima, atirava os
caixotes de comida fresca que se desfaziam na terra e eles e nós a disputarmos de gatas
a carne, o bacalhau, os saquitos de legumes, as batatas, as unhas dos bichos de repente
tão grandes e os dentes tão agudos, os animais, quase metade mancos, de súbito
violentos, cruéis, um camarada a disparar sobre eles
- Cabrões
comigo a pensar quem eram de fato os cães ali, os bichos que não desistiam apesar
dos tiros ou a gente de modo que eu para o comandante - Não percebo meu comandante mas sou apenas um cão
também feio, manco, cruel, pronto a esgaravatar o chão na esperança de raízes não
de mandioca, as minhas e trazer cá para fora a minha mãe, o meu pai, a madrinha Lucília,
a minha avó que puxei pelo pescoço - Ainda estou viva menino?
e se pôs logo a descascar cenouras na cozinha de óculos consertados a adesivo - Não me distraias agora com tanto que fazer
a minha filha dá ares dela acho eu, a pálpebra descida, a maneira de andar, a cada
ano a aldeia mais abandonada e as mimosas da serra a descerem para ela, qualquer dia
invadem as casas, o pelourinho, o largo, engolem o cemitério, engolem a sombra dos
mortos, a minha avó a sumir-se - Adeuzinho
com a saudade do filho na Alemanha num retratito de esmalte ao pescoço, não o
filho adulto, pequeno, de casaco e laço, a sorrir de susto à beira das lágrimas, afiançando
nos postais de Natal - Descanse que um dia volto senhora e fico aí
e nem quando ela morreu a visitou, um telefonema para o meu pai - O restaurante não me dá descanso não posso
o meu pai um paz de alma compreensivo - Pois claro pois claro
e já faleceram todos coitados, volta não volta na aldeia tenho a certeza que os escuto
no vento, os pinheiros sacodem-se e são eles - Garoto
a pesarem nos ramos, a minha prima que continua a morar na aldeia e toma conta
dos finados - Não escutas?
em pequena brincava às moradias nos jazigos, inventava jantarinhos para os defuntos
com folhas e caroços e bagas - Querem mais?
inclinava-se para mim em voz baixa - São esquisitos os mortos não respondem à gente
à medida que um grande mistério passava devagarinho nos choupos cheio de ecos,
passos, talheres, sons de loiça, vozes enquanto um apontador de metralhadoras