António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

estrangulava a mãos ambas um cachorro que tentava fugir com um pedaço de carne e
o branco dos olhos dos dois a aumentar em redor da pupila, qual deles estrangula o
outro meu comandante diga-me, qual se torna um montinho insignificante abandonado
na pista e qual se afasta de nós sem nos ver apertando contra si um embrulho rasgado,
vermelho, a pingar



  • Percebe a morte nosso alferes?
    gotas lentas que me perguntavam se eu em África ou no muro do quintal da aldeia
    que o meu pai levantou aos domingos de cigarro apagado na orelha, não um cigarro
    completo, a beata apenas com uma das pontas ardida, o muro de onde eu espreitava,
    de corpo ali mas de nariz na estrada, o aparecimento dos meus filhos e estávamos
    sentados em círculo nas cadeiras do hospital quando o psicólogo entrou de gravata ao
    acaso

  • Perdoem a demora senhores
    e eu a pensar que gostava que a minha filha casasse mas vejo-a sempre sozinha,
    pombos e pardais já com o verdete da idade refletidos na janela meio aberta, aliás nem
    onde mora nos disse, aliás se me interessar a resposta do costume

  • Descanse que não é debaixo das pontes
    e acredito que não seja porque não traz uma manta dobrada sob o braço e pelo
    menos anda razoavelmente limpa vá lá, razoavelmente penteada, numa das últimas
    ocasiões em que nos visitou um anelzito de prata que levou sumiço depois, tentei

  • O anel?
    e tudo o que respondeu foi uma da sobrancelhas erguida, as mãos dela no gênero
    das minhas coitada só que mais pequenas é lógico, eu patorras, em bebé apertava com
    força o dedo que lhe punha na palma, qual o motivo de não o apertares agora e o
    psicólogo para mim, de prega na testa

  • Perdão?
    se calhar derivado a que os remoinhos do cacimbo o impediam de ouvir, um, dois,
    três ou quatro de súbito e os cães a fugirem, o soba segurava de joelhos a máquina de
    costura, aterrado, tanta nódoa no uniforme o pobre e descalço, a miséria dele a falar

  • Nosso arfere
    e nenhum orgulho, nenhuma autoridade, remendava os camuflados da gente, as
    peúgas, um lençol, as fitas desbotadas do uniforme ridículo a que os portugueses o
    obrigavam tão coçado, sempre de capacete colonial na cabeça e com duas mulheres
    quase tão velhas quanto ele, o soba a que ninguém obedecia claro e para o qual ninguém
    se curvava, sem argolas, sem conselho de cotas, sem o povo se ralar com ele, tão
    solitário quanto nós dirigindo-se-nos em atitude de prece

  • Muata muata
    respeitoso, submisso, sem cobertores nem cabras e por conseguinte sem dinheiro,
    não era diante dele que o feiticeiro degolava galos com os dentes escarrando as cabeças
    no chão em lugar de entregar-lhas depositando-as junto aos seus tornozelos inchados
    juntamente com pedritas e conchas, o agente da polícia política que de mês a mês o
    aviãozeco trazia de mistura com os frescos, mais o capelão e as cartas, a chamá-lo
    dobrando o dedinho

  • Chega-te aqui ó Merdas

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