(uma coruja?)
quase embateu no capô a piar, não guinchos de pardal, sons roucos de ameaça, os
arbustos ferozes, as trevas carrancudas, o que sentiria a minha mãe coitada ao acordar
durante a noite pensando
- Vou morrer
o meu pai a dormir ao seu lado e ela, tão sozinha, olhando uma ravina infinita mesmo
ao lado do colchão e dizendo a si mesma - Vou cair vou cair
com o ar à sua volta a fugir dos pulmões, a minha avó agitando-lhe adeus à medida
que tombava, a casa tão lá no alto a que não poderia voltar, uma parente perdida há
séculos para um senhor de bigode entretido a aperfeiçoar um calo - Não dá pena?
e dava pena realmente, dava tanta pena, Sua Excelência e eu dentro do carro,
quietos, perplexos, a não sei quantos quilômetros da aldeia, um, quatro, nove, contem-
nos vocês por mim, se o meu pai ali estivesse surgia das labaredas, dos estrondos, dos
corpos mutilados, do fundo do horror a segurar-me o cotovelo impedindo os homens
verdes de me fazerem mal - Este é meu
impedindo que me jogassem ao chão, me esmagassem as costelas, me cortassem a
orelha, me pusessem numa garrafa de álcool de olhos abertos, chorando, um homem
verde para ele designando-me com a espingarda - Mais cedo ou mais tarde o preto vinga-se de si
enquanto os últimos carvões, à nossa roda, se apagavam um a um e as últimas
cubatas cinzas, as últimas plantas de liamba cinzas, o último cabíri a gemer, a última
cabra defunta, Sua Excelência - E agora?
pela primeira vez em anos a procurar-me a mão, a segurar-me a mão, a prendê-la nas
suas, pela primeira vez em anos a olhar-me sem rancor, sem ódio, sem desprezo sequer
de modo que eu, no meio da noite, ao mesmo tempo perto e longe da aldeia, perto e
longe dos meus pais, perto e longe da violência e dos gritos, de modo que eu pela
primeira vez em anos e pela primeira vez dentro do carro inclinei o banco, puxei-lhe o
vestido para cima, tornei-me unicórnio, declarei-lhe na boca - Amor
peito contra peito - Amor
ventre contra ventre - Amor
dentes contra dentes - Amor
enquanto as grandes borboletas de maio, de antenas atrozes, gordas, repugnantes,
nos giravam em torno, enquanto nenhum vento nas ervas, salgueiros acho eu mas posso
estar enganado, plátanos, mimosas, ulmeiros, choupos, o raio que os parta, é-me
indiferente, Sua Excelência e eu peito contra peito, ventre contra ventre, dentes contra
dentes ao mesmo tempo que uma coruja, ao mesmo tempo que morcegos na direção