- Sinto nos vossos semblantes
e a chuva a pouco e pouco apagava, ao apagar a alegria de servir a Pátria apagava-se
também, sobrava eu no beliche do camarote em que tudo estava aparafusado à parede,
cama, mesa de cabeceira, armário, pena não me aparafusarem a mim e na janela,
redonda como os sonhos que nunca os tive pentagonais, a chuva, eu sentado no beliche
a torcer os pulsos vendo o meu pai na sala com os guardas - Aconteceu alguma coisa ao meu filho?
os três de pé entre a cômoda e o sofá com a minha madrasta e eu a olhá-los, o das
duas sobrancelhas de polegares metidos no cinto a engolir, a engolir e o da única
sobrancelha a coçar o pescoço até que o das duas sobrancelhas soltou um dos polegares
fitando não o meu pai, qualquer coisa além do meu pai que parecia interessá-lo, voltei-
me e a parede somente com uma rachazita, nem um quadro sequer, junto ao buraco de
um prego, ganas de perguntar o que haverá de fascinante no buraco de um prego ainda
por cima sem prego, o polegar já não no cinto e que estranho um polegar a abrir a boca - Amigo
com o vinco do bivaque a toda a volta da cabeça, testa incluída, como uma auréola
apertada, a minha madrasta suspensa à espera, de pantufas de xadrez já velhas dado
que a partir de certa idade todos os sapatos magoam, é preciso mais espaço para as
deformações dos ossos e dos dedos que continuam a crescer, encaroçados, tortos,
aposto que nos caixões do cemitério pés enormes, lenhosos, apontados para cima
rasgando o veludo da tampa com as unhas amarelas e quebrando a própria tampa por
fim, quem me jura que os choupos sobre as lápides não foram pés outrora, cheios de
calos de nós e abrindo as falanges dos ramos, o polegar a repetir - Amigo
para o meu pai na aldeia e para mim no barco e a cara do meu pai a esvaziar-se de
súbito de feições e de cor como a cara do alferes paraquedista se esvaziou por fim e os
traços girando no ralo imenso da boca, ele miúdo a correr atrás de cabras no norte,
passou anos no seminário cheio de medo de Deus, uma mulher - Despe-te
numa cidadezinha de província mas qual, com um estore oblíquo paralisado na janela
e o alferes ainda não alferes, com a mala com que fugira dos padres, a mala que julgava
perdida e agora, imagine-se, reencontrava em África à medida que tentava sorrir,
pensou - Pelo menos a mala eu levo
mas para onde meu Deus, o alferes à espera do helicóptero e nem tristeza nem dor,
apenas a mulher a alisar-lhe o cabelo - Meu menino
quase a embalá-lo como o embalava esta tarde em que ele descia devagarinho, sem
dores, no interior de si mesmo enquanto os soldados, inclinando-se, lhe acenavam
adeus, a última coisa de que teve consciência foi daquilo que gravaram na medalha que
trazia ao pescoço, o 78902690RH+, que lhe haviam de pregar no caixão e ele com pena,
senhores, tanta pena e derivado a que não compreendia porquê perguntou - Pena?
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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