António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

e um par de guardas de bivaque, um com duas sobrancelhas e o segundo só com uma
embora o meu pai muito mais novo, quase igual ao alferes, ora aqui ora num barco que
se afastava, afastava à medida que uma banda marchas e muitos lenços no cais, o meu
pai



  • O que eu pensei no meu irmão porque tu não chegavas também
    e aí está uma novidade olha olha, ou seja o tio que não mencionava nunca a cair-me
    do céu aos trambolhões, morto num acidente mais ou menos no sítio onde o meu
    automóvel ficou ou seja uma curva que dava azar à família, ao mesmo tempo que a
    minha mãe descascava uma maçã para Sua Excelência e uma maçã para mim

  • Só com a sopa ficam cheios de fome
    como se a gente lhe estendesse latas ferrugentas do outro lado do arame farpado,
    Sua Excelência tão feia de cabelo às três pancadas, o vestido tombado do cabide murcho
    dos ombros e os pés sujos, tortos, procurando ganhar viço num alguidar de água morna
    para além de lhe faltarem um ou dois dentes lá atrás em cuja ausência nunca reparara,
    engraçado que sejamos feitos de pedaços ao acaso que não sei quem reuniu e já agora,
    sendo dessa forma, porque não tirar o rim das pedras à minha mãe e encaixar-lhe outro
    lá dentro, Sua Excelência afinal vulgaríssima, que parvo sou, o que me terá encantado
    naquilo, deu-me a sensação que a minha irmã num banquinho, satisfeita comigo, a
    sensação que a minha mãe, que nos escutava a ambos, a levantar a voz apesar de
    igualmente calada

  • Meninos
    que só a minha irmã e eu entendíamos dado que Sua Excelência ocupada com a maçã
    e o pai embrulhado na lembrança do irmão, com orgulho nele e, que esquisito,
    envergonhado do orgulho, o meu pai se calhar, apostava que de certeza, sei lá porquê
    envergonhado de si mesmo igualmente, tantas sombras nas pessoas, tantas sombras
    em mim e no interior das sombras as labaredas do napalm, um homem de braços
    afastados que crescia no ar tombando em cinza depois, tão branco o osso da perna, tão
    brancas as costelas e logo a seguir negro, logo a seguir o alferes, ainda não meu pai,
    atropelando-me sem me ver

  • Mata mata
    nem lavras de mandioca nem milho nem liamba, disparos de bazuca, de
    metralhadora, de gê três, o que se passou com o seu irmão, nosso alferes, o que se
    passou comigo, o meu pai que falava tão pouco

  • Tenho a certeza que há alturas em que conversamos ainda
    eu de joelhos contra uma mulher procurando-lhe o peito, eu deitado contra uma
    mulher escondido no seu peito, a gengiva desmobilada de Sua Excelência a crescer, o
    barulho horrível das mandíbulas mastigando a maçã, mastigando-me, eu a encontrar
    finalmente o peito da mulher e não leite já, o alferes, ainda não meu pai, ia e vinha a
    correr, um helicanhão, dois helicanhões e os atiradores a falarem com os pilotos, quer
    dizer a mexerem a boca mesmo por cima de mim, pretos caindo antes de alcançarem a
    mata, as cabras a irem e a voltarem porque as chamas do capim as perseguiam, a árvore
    sob a qual os cotas fumavam desaparecida, o capitão

  • Depressa
    o capitão

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