António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Ninguém foge na direção do rio ninguém foge
    e depois de amanhã o porco, mais gritos, mais sangue, a nespereira do quintal, a
    hortazinha, a minha mãe poisada no meu ombro

  • Felizmente chegaste
    numa voz que de há semanas para cá se ia tornando diferente, vinda de muito fundo
    da garganta, muito fundo do corpo, ela, tão enérgica dantes, sentada num banquito a
    existir muito menos, de narinas abertas engolindo o ar e o meu pai subitamente com
    medo

  • Tu
    a procurá-la nela mesma dado que não a encontrava em si, às vezes a meio do sono
    sentia-a junto à minha cama, enorme, de joelhos contra o colchão e a cabeça quase no
    teto, inquieta, cheirando ao que cheiram as mulheres de noite ou seja a gaveta secreta
    ou a baú misterioso, a verificar se eu dormia, quando os passos dela se afastavam eu
    tão sozinho, tão sozinho, eu

  • Mãe
    sem as palavras, só os gemidos do vizinho de baixo cujo reumatismo o fazia
    atravessar o teto dele e o nosso soalho e deitar-se à minha beira, descia as escadas cheio
    de pernas e bengalas movendo-se a descompasso a tentar reunir aquilo tudo debaixo
    do tronco, a mulher ajudava-o se um pé mais rápido ou mais independente se afastava
    dele, como devia ser custoso comandar tanto sapato, o pêndulo do relógio da sala
    deslocava-se na dignidade dos gordos sobre um círculo de números romanos que lhe
    aumentavam a importância como as datas nas estátuas, o meu pai dava-lhe corda com
    uma chave logo abaixo do VI, tapava a boca com a palma se ele ou o relógio uma
    badalada em atraso do estômago devido ao último jantar, Sua Excelência por uma vez
    muda, não gritando ordens, não mandando em mim, a olhar o pedaço de maçã que se
    oxidava no prato, já não branco, castanho, mesmo com sono apercebia-me dos estalos
    da nespereira do quintal e das asas de cartolina dos mochos procurando ratos, ouriços,
    o meu pai a derrubar a cadeira e a olhar em torno encostado à parede, a minha mãe
    para nós num fiozito enquanto endireitava a cadeira

  • Está em Angola mais uns minutos e volta
    e isto todos os anos durante a matança do porco, o resto do tempo quase sempre
    tranquilo, de quando em quando lá reagia a uma porta distante ou passos noutro
    apartamento a perguntar, indeciso

  • São eles?
    a minha mãe continuando o croché

  • É o do reumatismo coitado
    o meu pai sem acreditar nela palpando-se em busca da arma que já não tinha, de
    repente de gestos desembaraçados, novo, magro, com cabelo, a minha mãe muito mais
    velha do que ele, claro, sem tirar os olhos da agulha

  • Acabou-se
    e o meu pai, dando conta do croché, a regressar a pouco e pouco já não de camuflado,
    vestido como nós, habituando-se a Lisboa, à casa, ao si mesmo de agora, o meu pai
    envergonhado

  • Desculpem

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