António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

à medida que o postigo mais claro e uma mulher de raízes do cabelo grisalhas e a
seguir ao grisalho loira, com algumas unhas ainda com restos de vermelho, a do polegar
comida logo a seguir ao sabugo e não cheiro a perfume, cheiro a azeite de açorda



  • Trazes dinheiro preto?
    cheiro a filho pequeno, cheiro a lodo de enguias do Tejo, com os olhos aumentados
    por um resto de lápis barato que a primeira lágrima, saída ao bocejar por exemplo visto
    que a partir dos trinta não comandamos essas minúcias, levará consigo

  • Trazes dinheiro preto?
    e a minha irmã já lá fora no quintal, se calhar caminhou toda a noite na aldeia, subiu
    ao cemitério, subiu à ermida, demorou-se no largo, é impossível que não saibas da mãe
    mana, é impossível que o nosso alferes

  • Este é meu
    não te tenha contado, o nosso alferes

  • Tu
    e a esposa a olhá-lo de longe

  • Desculpa
    enquanto as pedras continuavam a espalhar-se e roíam, roíam, o forno liga-se aqui,
    o isqueiro do esquentador neste botão percebes, o frasco das feridas diz Álcool mas é
    Água Oxigenada não esqueças, tens mesmo a certeza que não queres que eu ponha
    outro rótulo, tantas explicações coitada, tanto medo que eu, como será estar sozinho a
    pensar em ti, tardes inteiras à espera que o capitão

  • Saímos amanhã
    a fumar em pé ao meu lado de olhos chana fora com uma carta da Metrópole na mão

  • Quando é que isto acaba?
    a minha irmã perto das couves da horta a sorrir calada e não um sorriso, outra
    expressão, sempre outra expressão com ela, Sua Excelência acordada a olhar-me
    coçando as costas com dedos pensativos

  • Que horas serão?
    aposto que também com o Filipe na ideia, quem raio é o Filipe para além de ser
    branco é evidente, o Filipe branco e eu um chimpanzé encontrado num quimbo, euá, ao
    tentar levantar-me da parede em que me acocorei as pernas sem força não me
    ajudavam nem a mulher de bruços que acabava no fim dos braços, onde param os
    dedos, o alferes deixou o hospital com a mãe e um bando de ciganos frente à Urgência
    à espera, o vento ao mudar na aldeia trazia as árvores do cemitério, as lápides, olha os
    cães vadios do aquartelamento aqui e o furriel que se não tinha correio disparava sobre
    eles, os remoinhos do cacimbo nasciam sei lá como, Sua Excelência sem se levantar

  • Tão tarde
    ora cega ora a ver

  • Sou mesmo parva em estar aqui contigo que pardieiro
    a minha mãe no corredor, na cozinha, com um dos sapatos mais pesado do que o
    outro, aposto que como não via ninguém se amparava aos móveis, no caso de a
    encontrarem uma careta a fingir-se divertida

  • Fiquei aqui a pensar é da idade
    eu com ganas de abaná-la, eu zangado

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