António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • A Fininha
    que lhe puseram no caixão e deve ter casado com outro porque o Bichezas não veio,
    continua em Angola, ai Bichezas Bichezas, a tentar entender os morteiros, servia-nos o
    jantar, conserva de atum com ciclistas, de casaco branco engomado

  • Senhores oficiais
    às cinco e meia da tarde porque às seis noite sempre, o gasóleo do motor caro, ai
    Bichezas Bichezas, tão rica aquela terra a comer-te num instante, pratinhos de pevides,
    molho inglês que o capitão recebia, o meu filho a um canto da mesa que não chorava
    nem falava, dormia numa cama de bordão de palmeira ao meu lado, a comer com as
    mãos, ao regressar de África ganas de pedir à minha mulher mexe-te, passeia pela casa,
    existe, toca-me com dedos reais, pisa-me um pé, empurra-me, não me largues sozinho
    continuando acompanhado, amanhã o porco de patas amarradas estendido no chão, a
    minha prima que toma conta do jazigo

  • O que ele vai berrar santo Deus
    e se fossem só berros, lágrimas também, eu para ela

  • Alguma vez bebeste lágrimas de bicho prima alguma vez bebeste as minhas?
    e ela calada a fitar-me, quase tão velha quanto eu, uma dor nas vértebras como a
    minha mãe, uma bata de riscado sempre, o marido na Alemanha cartas de vez em
    quando

  • Conto ir aí no Natal
    e não vinha, mandava roupa, um anel, desejo que não tenhas engordado e te sirva,
    o que os porcos choram, adivinham, devia sentar-me no largo sob a acácia com os
    restantes velhos e ficar à sua beira a contemplar o tempo em silêncio, não o tempo lá
    fora, os anos cá dentro lembrando-me de quando ia buscar o meu pai para jantarmos e
    lá vinha ele e a bengala e o aneurisma e o boné que continua no cabide da entrada
    senhor juntamente com o chapéu preto e um casaco de malha esquecido que ainda
    cheira a tabaco, ainda cheira a você, o que lembro melhor, sei lá o motivo, não se
    zangue, é do seu nariz e da maneira como me ordenava

  • Dá cá o teu braço
    porque um aneurisma na barriga dificulta as pernas e mói, queria levantar os
    calcanhares e eles não levantavam que coisa, parece que morrem antes da gente e
    anseiam por afundar-se na terra, a partir dos setenta apenas sobrevivemos cá fora da
    barriga para cima, vamos descendo aos poucos, damos menos trabalho, Bichezas
    Bichezas, não recordo o nome daquele que tomou o teu lugar, sinto nos vossos
    semblantes a alegria etc, vá para o caralho meu general, o meu pai nunca tirava o colete,
    nunca desabotoava o colarinho e a minha mãe no degrau do quintal à espera, aliviada

  • Vocês estão bem a sério?
    a chamar-me de parte com a mãozinha para cá e para lá

  • O que é um aneurisma?
    e aqui entre nós o que é um aneurisma de fato, qualquer coisa que rebenta e morre-
    se afogado por dentro, a minha nora na cozinha comigo quando o sol da manhã
    empurrou a nespereira do quintal, com pássaros e tudo, quase até à mesa de tampo de
    pedra onde se comia e algumas folhas a roçarem por nós

  • A lata do café?

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