António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Mais café?
    e o meu pai a mirar-me calado com a nespereira lá de fora entre nós que em lugar de
    nos esconder um do outro nos aproximava, com tantos pássaros ora no meu ombro ora
    no dele, pardais, um melro, pergunto-me se tordos, há alturas, talvez não acredite mas
    há alturas mesmo apesar da mulher sem mãos que cuidava de mim em que quase gosto
    de si, tanto sol na aldeia e o porco de amanhã a comer sem nenhum grito por enquanto,
    fungando apenas, sentia a presença da minha mãe embora não a visse porque um
    silêncio mais espesso no quarto deles do que no resto da casa, nenhuma respiração,
    nenhum pigarro, nenhum bicho que vai ser morto e portanto ela não morre igualmente,
    nenhum motivo para morrer senhora, tem duas mãos, duas orelhas, ninguém lhe
    amarra os tornozelos e a suspende de um gancho, se aproxima de si com uma faca, o
    médico para nós, de olhos solenes

  • Talvez um bocadinho menos que seis meses
    demorando a encarar-nos numa espécie de vergonha ao mesmo tempo que o

  • Talvez um bocadinho menos que seis meses
    ia alastrando a sua mancha amarga e a minha irmã de súbito rápida, ela tão lenta
    sempre, a ir-se embora batendo a porta, de nariz na vitrina de uma loja de roupa lá fora,
    uma atitude estranha de regresso do biombo, ainda a compor o casaco azul para a gente,
    intrigada

  • Parecem tristes vocês
    e nós, claro, não estamos tristes que patetice, devido a que carga de água havíamos
    de estar tristes, para sua informação ficamos até contentes com os exames, isto está a
    ir sabia, devagarinho porque não há pedra que não seja dura, olhe o granito, olhe o
    basalto, olhe o xisto mas está a ir com calma, os remédios americanos fazem milagres,
    a medicina evolui como o caneco, daqui a quatro, cinco anos no máximo os hospitais às
    moscas e milhares de enfermeiras no desemprego coitadas sem falar no prejuízo das
    agências funerárias nem dos gatos pingados a pedirem esmola nos cafés, a minha mãe
    na casa da aldeia enquanto os militares se iam embora deixando cabras degoladas,
    restos de cubatas que ardiam ainda, cinzas que as espirais do cacimbo dispersavam, Sua
    Excelência com metade do peito fora do vestido encontrou a caixa de folha do açúcar,
    estendeu-ma para que eu a abrisse a fim de não quebrar as unhas nem aleijar os dedos,
    comigo a fazer força, de lábios apertados, às voltas com aquilo, se tinha fome, mesmo
    já com cinco ou seis anos, lembro-me que a mulher sem orelhas que não sei quem seria
    ou não me interessa saber me empurrava para dentro da boca um dos peitos vazios, se
    por acaso perguntasse ao meu pai

  • Quem era?
    o alferes que me trouxe respondia pelos dois

  • Já esqueci
    o que não era verdade, não esqueceu, como pode esquecer salvo se os brancos
    diferentes de nós do mesmo modo que Sua Excelência diferente de mim, se tentasse
    abraçá-la ali na casa da aldeia diante do meu pai

  • Não te aproximes macaco
    e o meu pai para mim

  • Filho

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