- Parecem tristes vocês
e parecemos tão tristes não é, tão tristes, ou seja não bem eu, talvez o meu pai depois
de os furriéis o deitarem e lhe apagarem a luz com toda a África em torno, as árvores,
as chamas, os quimbos, a impiedade da chuva no zinco do teto, na véspera de sair para
a mata, eu que dormia num pedaço de colchão ao seu lado, percebia-o de olhos abertos
no escuro como percebo a minha mãe agora naquele quarto acolá, vigiando o próprio
corpo e tentando entender a própria morte que a ia invadindo osso a osso, músculo a
músculo, víscera a víscera, a sua morte, senhora, já nas suas feições mas ainda não nos
seus olhos, aposto que trouxe de Lisboa a camisa de dormir com rendas e um lacinho
também branco à frente, quase cômica de tão antiga e o alferes ainda não alferes ao
seu lado, composto no pijama, a pensar torturando os pés com os pés - E agora?
aflito, indeciso, acaricio onde, toco onde, fico à espera que ela, apago a luz não apago,
falo-lhe não lhe falo, procuro-a não a procuro, digo-lhe que a amo ou abraço-a apenas,
tão difícil viver, tão complicado, como faria o meu irmão com outros homens e a ideia
do irmão com outros homens aposto que o horrorizava, como se entretêm eles, ganas
de perguntar-lhe agora de manhã, na cozinha, com a perna interminável de Sua
Excelência e comigo, enquanto a nespereira nos separa uns dos outros, enquanto a
mulher sem mãos me chama - Muana
sem olhar porque os pretos não se olham nunca, olham na mesma direção e pronto,
vivem sozinhos, desaparecem sozinhos, devem nascer sozinhos e por consequência
nasci sozinho como eles, a minha irmã como de costume todos os anos imóvel no quintal
à espera e o que esperas tu diz-me, a minha irmã sem as palavras e eu a compreendê-la
sem as palavras - Desejo tanto que esta família acabe
sem que entendesse porque nos queria mal desejando que acabássemos,
permanecia a um canto da adega conosco durante a morte do porco, encostada à
parede , aguardando sei lá o quê de nós - Aguardar o quê da gente?
e ela fitando-me sem me responder ao mesmo tempo que o porco gritava e eu seguro
que a prima do meu pai, que tomava conta dos nossos mortos, com a chave do jazigo
no bolso do avental e qual a razão de a trazer, quatro ou cinco caixões, cada um com
uma espécie de lençol por cima, não, seis prateleiras e quatro caixões e portanto duas
prateleiras vazias, uma de cada lado, que me aterrorizavam sempre, não me lembro de
jazigos em África, deixava-se que os mabecos viessem comer-nos, Sua Excelência
tapando os olhos com as costas da mão - Que horror
a olhá-la sem a ver, a olhar-me sem me ver, a olhar-nos aos dois e apenas ao olhar-
nos aos dois a ver-nos de fato, desde que me casei nunca estive com outra mulher
exceto duas ou três ocasiões com a mulata cabo-verdiana sempre de guarda-chuva que
limpava o escritório, chegava quando nos íamos embora, ficava ali sozinha, sem ruído,
quase inexistente, confundida com os móveis, mais pequena que o balde, mais pequena
que a vassoura, de cabeça inclinada para o chão, a varrer, a esfregar, à medida que o dia
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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