António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

ensinou-me ele e eu apesar de tudo um miúdo menos difícil que um cantil meio cheio,
uma mauser que acerta a quatrocentos metros e um pano de tenda, isto não, claro, em
passo de corrida marche, isto lento e à vontade, por causa das coisas traz o ancinho não
vá um cão de rebanho ladrar-nos às pernas, Sua Excelência para a pasta de açúcar escuro
que sobrava no fundo do café



  • Vou mudar de roupa que não quero escandalizar os saloios
    mandando à amiga um beijo disfarçado que a minha irmã apanhou com a mão no
    gesto rápido com que dantes caçava borboletas, moscardos, a palma dela zumbia,
    arrancando-lhes as asas o zumbido cessava, eu para a minha irmã

  • Mostra
    e somente um inseto morto de patas encolhidas a minha irmã no meu emprego

  • Só queria ver-te adeus
    e só querias ver-me porquê se não gostas de mim, não te interessas por mim, não
    conversas comigo, a minha irmã de costas afastando-se sempre, sem um aceno, sem
    nada

  • O que percebes tu da vida és tão burro
    eu para a cabo-verdiana que nem sequer se compunha na roupa

  • Achas que sou burro eu?
    desaparecia de gatas sem me responder pegando novamente num pano a fim de
    lutar com a nódoa, o meu pai e eu juntos como dantes em Angola quando ele não
    conseguia dormir e me trazia ao colo até à entrada da barraca, nós lado a lado sem
    darmos com as sentinelas nos abrigos de placas de metal, tábuas grossas e sacos de
    areia, a minha mãe para mim, inclinada sobre o meu ouvido enquanto ele desconfiado,
    tenso, ia farejando a noite

  • O teu pai nunca saiu de Angola
    quantas vezes ao jantar mo apontava com as sobrancelhas

  • Não vês?
    assim que ele de repente longíssimo de nós continuando ali, ele logo atrás do guia

  • Piquem mais
    o milho seco folhas de cartolina a estalarem junto ao que sobrava da casita do chefe
    de posto, com um buraco sem caixilhos no que fora uma janela, a minha irmã

  • O que percebes tu da vida és tão burro
    e entre a aldeia e a vila quintazinhas, hortas, um armazém abandonado a que
    faltavam ripas cuja porta de trinco solto batia, meia dúzia de oliveiras muito antigas já
    cinzentas, inúteis, carregadas de poupas, deu-me ideia que um corvo mas não existem
    corvos aqui, existem pintarroxos, gralhas, se encontrasse a cabo-verdiana é evidente
    que não lhe falava, encostada às paredes tentando não existir, tão pobre, uma tarde
    veio trabalhar com uma criança que não se atrevia a brincar no escritório, embora
    marchássemos lento e à vontade a caminho da vila o alferes cansado, o cantil meio
    cheio, a mauser e o pano de tenda pesavam-lhe, reparei que uma das pernas mais lenta
    que espevitava batendo na coxa

  • Não me obedece como deve ser esta

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