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H8 Especial QUARTA-FEIRA, 1 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Emma Smith
THE NEW YORK TIMES
OXFORD, INGLATERRA
O Twitter tem nos provocado:
quando ele estava em quarente-
na contra a praga, William
Shakespeare escreveu Rei Lear.
A vida de Shakespeare foi mar-
cada por pragas. Apenas algu-
mas semanas após seu batismo
na Igreja da Santíssima Trinda-
de, em Stratford-upon-Avon,
em 1564, o registro dizia: "Hic
incepit pestis" (Aqui começa a
praga). As taxas de mortalidade
na cidade foram quatro vezes
superiores às do ano anterior,
livre de peste. Shakespeare, o fi-
lho do luveiro da cidade, sobre-
viveu a este e a muitos outros
surtos. Grande parte de seu tra-
balho foi composto, se não em
confinamento, à sombra de
uma doença altamente infeccio-
sa sem cura conhecida.
Enquanto os teatros foram fe-
chados devido a uma epidemia
nos anos de 1592 e 1593, o jovem
dramaturgo
produziu seus
poemas narra-
tivos de enor-
me sucesso Vê-
nus e Adônis e
O estupro de Lu-
crécia.
Nos anos de
1603 e 1604,
quando a pes-
te impediu as
celebrações da
coroação do
novo rei, Ja-
mes I, e um em
cada cinco lon-
drinos sucumbiu à doença,
Shakespeare escrevia um estudo
sobre corrupção cívica, “Medida
por medida”.
No surto de peste do verão de
1606, Shakespeare podia muito
bem estar trabalhando em Rei
Lear , uma vez que a primeira
apresentação da tragédia foi no
Palácio de Whitehall, a princi-
pal residência londrina dos mo-
narcas ingleses Tudor e Stuart,
"na noite do dia de santo Estê-
vão durante o recesso” daquele
mesmo ano.
O impacto da doença na peça,
no entanto, é oblíquo. Há refe-
rências a pragas que perderam
sua especificidade ao longo do
tempo, mas que devem ter causa-
do um calafrio. Lear amaldiçoa
sua filha Regan e seu marido,
Cornwall, com “vingança, praga,
morte, confusão” e a repreende
como “uma úlcera pestosa, um
carbúnculo podre e tumefeito
no meu sangue corrupto”.
"Úlcera pestosa" refere-se às
glândulas linfáticas inflamadas
que eram um sintoma tão temi-
do da doença - não é algo que
qualquer pai ou mãe deseje ao
filho. Talvez a violência particu-
lar da peça na geração mais no-
va alegorize a da própria praga:
a doença era mais comum entre
os de 20 e 30 anos.
Shakespeare parece ter sido
capaz de excluir em grande par-
te seu contexto imediato. A pra-
ga está em todo lugar e em ne-
nhum lugar em seu trabalho.
Na linguagem de Rei Lear e ou-
tras peças, é onipresente – mas,
de outro modo, está quase total-
mente ausente.
Homens e mulheres, com cer-
teza, morrem de várias manei-
ras de acordo com sua imagina-
ção. Em Otelo , Desdêmona é su-
focada em sua cama. Em Tito An-
drônico , os estupradores Quí-
ron e Demétrio têm as gargan-
tas cortadas e são assados como
se fossem ingredientes de uma
torta. João de Gaunt morre de
velhice agravada pela ausência
de seu filho exilado em Ricardo
II. Em Hamlet, Ofélia se afoga.
Ninguém nas peças de
Shakespeare morre de peste.
Romeu e Julieta, que morrem
porque a carta do frade é retida
por medidas de quarentena no
norte da Itá-
lia, são os per-
sonagens que
têm maior pro-
ximidade com
a praga.
Assim co-
mo Shakes-
peare nunca
escreveu uma
peça na Lon-
dres contem-
porânea, ele
também não
se dirigiu dire-
tamente à cau-
sa mais impor-
tante de morte súbita em sua
sociedade. O realismo docu-
mental não era o estilo de
Shakespeare.
Isso é tema para outros for-
matos e autores literários – em
particular os contemporâneos
de Shakespeare, o dramaturgo
e panfletário Thomas Dekker,
que escreveu uma série de pan-
fletos em prosa sardônica e fe-
brilmente inventivos sobre a
praga, ou o poeta e dramaturgo
Ben Jonson, cuja peça O Alqui-
mista captura a energia manía-
ca de uma casa durante uma
praga, que foi deixada nas
mãos dos servos enquanto o do-
no está ausente – nos quais de-
vemos procurar encontrar os
efeitos diretos da praga na so-
ciedade do século 17.
Shakespeare faz algo diferen-
te. René Girard, o crítico fran-
cês, escreveu em um famoso en-
saio que “o caráter distintivo da
praga é que, em última análise,
destrói todas as formas de dis-
tinção”. As sepulturas em mas-
sa para as vítimas da peste fo-
ram um símbolo de como a
doença apagou as diferenças so-
ciais, de gênero e pessoais.
Dekker observou que, na co-
va comunal, "Servo e mestre, su-
jo e justo / Vestem o mesmo uni-
forme e companheiros são." A
peste era indiferente aos limi-
tes estabelecidos pela socieda-
de e seu apetite era voraz.
As imagens comuns na cultu-
ra medieval tardia – conhecida
como “danse macabre”, ou dan-
ça da morte - retratavam a mor-
te, personificada como um es-
queleto, movendo-se obscena-
mente entre os vivos. Ele está
com eles, invisível, no quarto,
na mesa, na rua, nos escritórios.
Embora aterrorizante, a des-
crição também domestica a mor-
te: ela se preocupa com a nossa
particularidade o suficiente pa-
ra nos perseguir à medida que
prosseguimos em nossos negó-
cios diários. As tragédias de
Shakespeare compartilham essa
intimidade. A resposta delas à
praga não é negar a mortalidade,
mas enfatizar a diferença única e
inalterável das pessoas.
O paradoxo da tragédia é que
ela ressalta a importância e a dis-
tinção do indivíduo, mesmo
quando o move inexoravelmen-
te em direção ao seu fim. Não
desafia a morte, mas atribui-lhe
significado e especificidade.
Tramas elaboradas, motivos,
interações e obscuridade con-
centram nossa atenção nos se-
res humanos. Ninguém nas pe-
ças de Shakespeare morre rápi-
da e obscuramente, jogado em
uma cova comunitária. Em vez
disso, as últimas palavras são
ouvidas, os epitáfios são esco-
lhidos com atenção e corpos
são enterrados com respeito.
Shakespeare não está interes-
sado nas estatísticas – o que na
época era chamado de conta-
gem de mortalidade. Suas fic-
ções reimaginam a macronarra-
tiva da epidemia como a micro-
narrativa da tragédia, estabele-
cendo a singularidade humana
contra os estragos obliterantes
da doença. Seu trabalho é um
profilático cultural contra a
compreensão de doenças ape-
nas em termos quantitativos,
uma vacina narrativa.
Rei Lear também faz isso: deli-
beradamente põe de lados os
números e os reduz para se con-
centrar nos indivíduos. O mo-
mento em que Lear percebe, du-
rante a tempestade, que ele ig-
norou a situação difícil de seu
povo, refere-se menos a desco-
berta de uma antiga nobreza bri-
tânica favorecida e mais a per-
cepção de que uma praga indis-
criminada deve nos lembrar de
nossa humanidade comparti-
lhada. A própria miséria do rei o
faz ver, pela primeira vez, que a
vida de outras pessoas também
tem significado. / TRADUÇÃO DE
ROMINA CÁCIA
E
m um filme de 1962, o Mura-
lhas do Pavor , os atores Vi-
cent Price e Peter Lorre se
enfrentam em um hilário duelo de
degustação. Price segue todos os ri-
tuais para provar a bebida e identifi-
car seu produtor e sua safra. Seu per-
sonagem, com todos os seus trejei-
tos, é a caricatura de um degusta-
dor. Lorre é um bêbado, que verte
os vinhos sem pensar e também
identifica produtor e safra, pede
sempre mais um gole e comenta que
o vinho é muito bom. Rever esta ce-
na, uma das poucas divertidas neste
filme de terror, baseado em contos
de Edgar Allan Poe, é uma das pedi-
das deste período de quarentena.
Outra pedida é o filme Uncorked ,
que estreou recentemente na Net-
flix. O filme conta a história de um
jovem negro (o ator Mamaoudou
Athie), que sonha em estudar para
ser master sommelier, mas é pres-
sionado pelo pai para assumir o res-
taurante da família. Aqui, o vinho é
o coadjuvante para uma complica-
da relação de pai e filho, e o roteiro
dá boas pistas sobre a rotina intensa
de estudos para obter um dos títu-
los mais cobiçados entre os profis-
sionais do serviço do vinho.
Como personagem principal, mas
na maioria das vezes, coadjuvante,
o vinho tem espaço no cinema para
os mais diferentes gostos. Nos fil-
mes antigos, uma pedida é O ano do
cometa , de 1992.
Na comédia romântica, a heroína
tem de escapar de um grupo de mer-
cenários interessados em uma garra-
fa de 1811, o ano da passagem do
cometa Halley. Também antigo e di-
fícil de ser encontrado é O segredo de
Santa Vitória , de 1969, com o ator An-
thony Quinn como personagem prin-
cipal. Ele é o bêbado da cidade, que
acaba nomeado prefeito e tem o desa-
fio de salvar o vinho local dos nazis-
tas.
Mais fácil encontrar em platafor-
mas virtuais, são os filmes a partir dos
anos 2000. Sempre vale rever Si-
deways, entre umas e outras , de Alexan-
der Payne que, em 2004, popularizou
a Pinot Noir, com bons efeitos até hoje
(na época, explodiu a venda de tintos
elaborados com esta uva).
Na comédia romântica, Milles le-
va o amigo Jack para conhecer os
vinhedos da Califórnia, em uma via-
gem de despedida de solteiro. Outra
divertida comédia romântica é Um
bom ano. Nele, o ocupado investidor
Max Skinner, vivido por Russel
Crowe, recebe um vinhedo de heran-
ça e relembra a infância.
Nos documentários, um divisor
de águas é o filme Mondovino , de
2005, do polêmico Jonathan Nossi-
ter. Produzido entre Argentina,
França, Itália e Estados Unidos, o
filme levanta a bandeira dos peque-
nos produtores e dos vinhos elabo-
rados sem os produtos de síntese,
como os agrotóxicos. Fez muito
mais sucesso do que o segundo fil-
me sobre vinhos do diretor, o Natu-
ral Resistance , que eu pessoalmente
gosto mais. Conta a história de pe-
quenos produtores de vinho que se-
guem a filosofia natural.
Há duas histórias importantes no
mundo do vinho, que ganharam seu
próprio filme. A primeira é Bottle
Shock , de 2008, que romantiza so-
bre a história do Julgamento de Pa-
ris. O evento é um marco real na
história do vinho e tem o mérito de
reconhecer a qualidade do vinho
norte-americano.
Na história real, o inglês Steven
Spurrier, então dono de uma loja de
vinhos em Paris, organiza uma pro-
va às cegas (sem saber o que está
provando) com brancos e tintos
franceses e norte-americanos.
E os vinhos da terra do tio Sam
são os mais bem avaliados. Sour Gra-
pes , de 2016, conta a história do indo-
nésio Rudy Kurniawan, que falsifica-
va garrafas de vinho e acabou conde-
nado por isso.
Imperdível é a série Somm , abre-
viatura de sommelier, que já conta
com três filmes. O primeiro, de
2013, traz o dia a dia dos candidatos
ao título de Master Sommelier. O
documentário deixa claro a dificul-
dade para conseguir o título e como
é o dia a dia da competição. O Somm
2 foca mais na produção de vinho e o
Somm 3 , no mercado.
Outro bom filme é Red Obsession ,
de 2012. Narrado por Russell
Crowe, conta como os chineses co-
meçaram a gostar de vinhos.
A PRAGA ESTÁ EM TODO
LUGAR E EM
NENHUM LUGAR
EM SEU TRABALHO
PARADOXO DA TRAGÉDIA
É QUE ELA RESSALTA A
IMPORTÂNCIA DO
INDIVÍDUO
WILLIAM SHAKESPEARE
TEMPOS DE PESTES
A vida do dramaturgo inglês foi entrecortada por pragas e é em meio delas que ele produziu suas grandes obras-primas, como ‘Rei Lear’
Le Vin Filosofia
SUZANA BARELLI
l]
Vinho & cineminha
SARA KRULWICH/THE NEW YORK TIMES
Festival. Máscaras nos 400 anos do dramaturgo em sua cidade, Stratford-upon-Avon
DYLAN MARTINEZ/REUTERS
‘Rei Lear’. Peça foi escrita por Shakespeare durante peste do verão inglês de 1606