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A8 Internacional QUARTA-FEIRA, 1 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Beatriz Bulla
CORRESPONDENTE / WASHINGTON
No dia em que os EUA supera-
ram o número de mortos da
China, a Casa Branca anun-
ciou que o país precisa se pre-
parar para ter entre 100 mil e
200 mil mortes por coronaví-
rus. O presidente, Donald
Trump, e os especialistas que
orientam o governo, pediram
que os americanos se ate-
nham às políticas de distan-
ciamento social e disseram
que as próximas duas sema-
nas serão dramáticas.
“A pergunta é o que acontece-
ria se não fizéssemos nada? O
número de mortos subiria a 1,
milhão ou 2,2 milhões. Tería-
mos pessoas morrendo em lob-
bies de hotel, nos aeroportos.
Isso não poderia continuar”,
disse Trump. “Serão duas sema-
nas muito dolorosas. Quando
você olha o tipo de morte que
tem sido causada por esse ini-
migo invisível, é incrível.”
O presidente disse que é “ab-
solutamente crítico” que todos
os americanos sigam as restri-
ções de circulação pelos próxi-
mos 30 dias. “É uma questão de
vida ou morte”, afirmou.
Os gráficos mostrados on-
tem pela Casa Branca indicam
que, em algum momento, o nú-
mero de mortes começará a de-
sacelerar, mas o país continua-
rá contado corpos até junho.
Os dados são de um modelo da
University of Washington e le-
vam em conta os dados de ou-
tros países que enfrentam o
problema, como a Itália.
O número de mortos nos
EUA superou ontem o da Chi-
na, onde a pandemia começou.
Autoridades americanas já re-
gistraram mais de 180 mil ca-
sos e 3,6 mil óbitos – pela pri-
meira vez, o número de víti-
mas ultrapassou também a
quantidade de mortos nos
atentados do 11 de Setembro. A
China tem 3,3 mil mortos e pou-
co mais de 80 mil casos – embo-
ra cada vez mais esse número
pareça irreal.
Estimativa. Anthony Fauci, di-
retor do Instituto Nacional de
Alergia e Doenças Infecciosas e
médico que comanda a força-ta-
refa da Casa Branca contra a
pandemia, disse ontem que os
casos continuarão subindo nas
próximas semanas, o que não
pode fazer os americanos rela-
xarem o confinamento.
“As orientações dos últimos
15 dias tiveram efeito, apesar de
ser difícil quantificar. Agora,
não é hora de tirar o pé do acele-
rador, mas apertar mais”, afir-
mou Fauci. Segundo ele, só o
isolamento evitará novos pi-
cos. “Temos esses números,
mas não quer dizer que os acei-
tamos. O modelo é atualizado
todos os dias. Faremos tudo o
que pudermos para reduzi-lo”,
disse Fauci.
A médica Deborah Birx, da
equipe de Fauci, disse que não
há “receita mágica” para com-
bater o vírus. “Nossos compor-
tamento pode mudar o rumo
da pandemia”, afirmou. Segun-
do ela, o esforço agora é para
controlar os picos já registra-
dos e evitar que outras regiões
se tornem epicentro da pande-
mia.
Ajuda. O epicentro da dissemi-
nação do vírus nos EUA ainda é
o Estado de Nova York, que con-
centra quase metade de todos
os casos. A cidade de Nova
York tem recebido reforço para
expandir sua rede hospitalar,
após alerta de médicos e autori-
dades locais de que não haverá
leitos e respiradores suficien-
tes para o tratamento de todos.
Um navio-hospital, o USNS
Comfort, atracou ontem no
Porto de Nova York para aten-
der os casos urgentes que não
forem relacionados ao vírus. A
embarcação tem 750 leitos. No
gramado do Central Park, no co-
ração de Manhattan, foram
montadas tendas para tratar in-
fectados e ampliar a capacida-
de do hospital Mount Sinai.
O primeiro caso de coronaví-
rus no país foi confirmado em
20 de janeiro e a primeira mor-
te aconteceu cerca de um mês
depois. Só em março os Esta-
dos começaram a adotar medi-
das mais drásticas para cons-
cientizar a população e estabe-
lecer diretrizes de distancia-
mento social.
As orientações federais vie-
ram somente a partir do dia 16,
depois de Trump ter perdido
muito tempo minimizado a gra-
vidade da pandemia. Atualmen-
te, três em cada quatro america-
nos vivem em locais onde há al-
gum tipo de quarentena.
É o caso da capital america-
na. Washington, assim como
os Estados de Maryland e Virgí-
nia, editaram uma determina-
ção, na segunda-feira, para que
moradores que desrespeita-
rem as restrições de circulação
impostas possam ser severa-
mente punidos. No caso da ca-
pital, a multa para quem des-
cumprir o estabelecido pela
prefeitura é de até US$ 5 mil
(cerca de R$ 25 mil) e até 90
dias de prisão.
l Infectado
O apresentador Chris Cuomo, da
CCN, irmão do governador de
Nova York, Andrew Cuomo, disse
ontem que tem covid-19. Cuomo
afirmou que seguirá fazendo seu
programa do porão de casa.
LONDRES
Na Hungria, o primeiro-minis-
tro Viktor Orbán pode agora go-
vernar por decreto. No Reino
Unido, os ministros ganharam
poder para deter pessoas e fe-
char fronteiras. O premiê de Is-
rael, Binyamin Netanyahu, fe-
chou os tribunais e iniciou uma
vigilância invasiva dos cida-
dãos. O Chile enviou os milita-
res para praças públicas, uma
vez ocupadas por manifestan-
tes. A Bolívia adiou as eleições.
À medida que a pandemia do
novo coronavírus se propaga e
os cidadãos ansiosos exigem
ações contra o vírus, líderes de
todo o mundo estão invocando
mais poderes e conquistando au-
toridade praticamente ditatorial
com pouca resistência.
Governos e grupos de prote-
ção de direitos civis concordam
que Estados precisam de novos
poderes para fechar suas frontei-
ras, impor quarentenas e ras-
trear pessoas infectadas. Mas
críticos alegam que alguns estão
usando a crise como desculpa
para se apropriar de poderes
que têm pouco a ver com o sur-
to. “Poderíamos ter uma epide-
mia de medidas autoritárias e re-
pressivas após a epidemia de
saúde”, disse Fionnuala Ni Ao-
lain, relatora especial da ONU
de contraterrorismo e direitos
humanos.
À medida que as novas leis
ampliam a vigilância do Estado,
permitem que governos impe-
çam indefinidamente as pes-
soas de se reunirem e se expres-
sarem. A pandemia vem redefi-
nindo normas. Sistemas de vigi-
lância invasivos na Coreia do
Sul e Cingapura, que lembram a
censura, foram elogiados por di-
minuir a velocidade das infec-
ções. Governos que inicialmen-
te criticaram a China por pren-
der milhões de cidadãos passa-
ram a fazer a mesma coisa.
Em Israel, Netanyahu autori-
zou a agência de segurança a ras-
trear cidadãos usando um acer-
vo secreto de dados de celulares
desenvolvidos para combater o
terrorismo. Ao monitorar os mo-
vimentos das pessoas, o governo
pode punir aqueles que desafiam
ordens de isolamento com até 6
meses de prisão. Ao determinar
o fechamento dos tribunais do
país, Netanyahu conseguiu adiar
a audiência em que enfrentaria
acusações de corrupção.
Em algumas partes do mun-
do, as novas leis reviveram ve-
lhos temores da ditadura. O
Congresso filipino aprovou
uma legislação, na semana pas-
sada, que concede poderes de
emergência ao presidente, Ro-
drigo Duterte. “Essa concessão
ilimitada de poderes equivale à
autocracia”, afirmou o Concer-
ned Lawyers for Civil Liberties,
grupo de direitos das Filipinas.
Advogados lembram que Duter-
te já comparou a Constituição
filipina a um “pedaço de papel
higiênico”.
Alguns Estados vêm usando a
pandemia para reprimir a dissi-
dência. Na Jordânia, depois que
uma “lei de defesa” emergencial
deu mais poderes ao governo, o
primeiro-ministro Omar Raz-
zaz disse que agiria com “firme-
za” contra qualquer pessoa que
espalhasse “rumores e notícias
falsas que provoquem pânico”.
O primeiro-ministro da Tai-
lândia, Prayuth Chan-ocha, im-
pôs um toque de recolher e cen-
surou a imprensa. Jornalistas fo-
ram processados e intimidados
por criticar a resposta do gover-
no ao surto.
O abuso também é notado na
América Latina. Embora o vírus
tenha tirado os manifestantes
das praças, a declaração chilena
de “estado de catástrofe” e a pre-
sença dos militares nas ruas si-
lenciaram a dissidência furiosa
dos últimos meses. A pandemia
também interrompeu as elei-
ções na Bolívia, marcadas para
maio e transferidas para o se-
gundo semestre – votação que a
atual presidente, Jeanine Áñez,
perderia, segundo pesquisas.
Nos EUA, o Departamento de
Justiça solicitou ao Congresso
novos poderes, incluindo um
plano para eliminar proteções le-
gais para requerentes de asilo e
deter pessoas indefinidamente
sem julgamento. Depois que re-
publicanos e democratas rejeita-
ram a proposta, o governo apre-
sentou outra mais comedida.
Grupos de direitos humanos
dizem que líderes autoritários
podem continuar absorvendo
mais poder enquanto seus cida-
dãos estão distraídos. Eles te-
mem que as pessoas não reco-
nheçam os direitos que cede-
ram até que seja tarde demais
para recuperá-los.
Algumas contas foram aprova-
das tão rapidamente que deputa-
dos e grupos de direitos huma-
nos não tiveram tempo nem se-
quer de lê-las. “Certos governos
têm um conjunto de poderes de-
sejados prontos para usar em ca-
so de emergência ou crise”, dis-
se Fionnuala. “Eles elaboram
leis com antecedência e espe-
ram que a chance apareça.”
“Com o tempo, os decretos
de emergência permeiam as es-
truturas legais e se normali-
zam”, afirmou Douglas Rutzen,
presidente do International
Center for Not-for-Profit Law,
de Washington. “É fácil cons-
truir poderes de emergência. Di-
fícil é desconstruí-los.” / NYT
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
WASHINGTON
O governo de Donald Trump
ofereceu ontem levantar as san-
ções contra a Venezuela se opo-
sição e chavistas formarem um
governo interino, sem a partici-
pação do presidente, Nicolás
Maduro e do dissidente Juan
Guaidó. A oferta representa
uma mudança na política dos
EUA, que fracassaram em suas
tentativas de afastar Maduro
do poder.
Com a Venezuela afetada pe-
los baixos preços do petróleo, a
pandemia do corona vírus e a
pressão dos EUA, Trump mu-
dou de tática para promover
eleições livres até o final do ano
e encerrar a crise. O secretário
de Estado, Mike Pompeo, anun-
ciou ontem formalmente a “pro-
posta de transição democráti-
ca” para a Venezuela como um
primeiro passo para o fim das
sanções americanas, até mes-
mo sobre o vital setor petrolífe-
ro, se Maduro e seus aliados coo-
perarem.
No entanto, não será um tra-
balho fácil conduzir Maduro e
seus associados para a reconci-
liação com Guaidó, reconheci-
do pelos EUA e mais de 50 paí-
ses como presidente interino
da Venezuela. Maduro tem se
mantido no poder, apesar dos
repetidos esforços dos EUA pa-
ra afastá-lo do cargo, e não de-
monstrou nenhuma disposição
de negociar o fim de seu regime.
Por meio de seu chanceler,
Jorge Arreaza, Maduro classifi-
cou a sugestão dos americanos
de “aberração”. “A Venezuela é
um país livre, soberano, inde-
pendente e democrático que
não aceita, nem aceitará jamais
tutela alguma de nenhum gover-
no estrangeiro”, disse Arreaza.
A iniciativa americana foi di-
vulgada menos de uma semana
após o Departamento de Justi-
ça dos EUA indiciar Maduro e
mais de uma dúzia de atuais e
ex-funcionários do governo
chavista pela acusação de narco-
terrorismo, que o líder venezue-
lano qualificou de “falsa”. O go-
verno americano ainda anun-
ciou uma recompensa de US$
15 milhões para quem fornecer
informações que levem à captu-
ra de Maduro.
O presidente venezuelano,
no entanto, ainda tem o apoio
dos militares, assim como de
Rússia, China e Cuba. Mesmo
assim, o governo de Trump es-
pera que a guerra energética, en-
tre a Rússia e a Arábia Saudita,
que contribuiu para a queda do
preço do petróleo – principal
fonte de divisas da Venezuela –
e a crescente ameaça da pande-
mia ajudem a tornar Maduro e
seus seguidores mais maleáveis
a uma saída negociada.
De acordo com a proposta
americana, a Assembleia Nacio-
nal, controlada pela oposição,
“elegeria um governo de transi-
ção inclusivo e aceitável para as
grandes facções”. Um conselho
de Estado governaria até a reali-
zação de eleições, que seriam
realizadas dentro de 6 a 12 me-
ses. O representante especial
dos EUA para a Venezuela, El-
liott Abrams, disse que a propos-
ta não prevê um exílio de Madu-
ro e não proíbe o líder bolivaria-
no de participar das eleições –
ele não poderá participar do go-
verno provisório. / REUTERS e AFP
Casa Branca prevê
mínimo de 100 mil
mortos nos EUA
l Alerta
Líderes de todo o mundo
estão invocando mais
poderes e conquistando
autoridade praticamente
ditatorial sem resistência
l Inocência
O general da reserva Clíver Alca-
lá, acusado de narcotráfico, de-
clarou-se inocente ontem diante
de um juiz de Nova York. Ele está
preso em local desconhecido
após se entregar, na sexta-feira.
ROBYN BECK / AFP
STEPHANIE KEITH/AFP
No dia mais trágico desde o início da pandemia, mais de 700 pessoas
morreram no país, que ultrapassa a China em número de óbitos
Tragédia. Médicos removem corpo em caminhão frigorífico do Hospital do Brooklyn, em NY
“É fácil construir poderes
de emergência. Difícil é
desconstruí-los”
Douglas Rutzen
PRESIDENTE DO INTERNATIONAL
CENTER FOR NOT-FOR-PROFIT LAW,
DE WASHINGTON
Duterte. Presidente filipino:
autoritarismo em alta
KING RODRIGUEZ/EFE
Para populistas, vírus
é chance de acumular
ainda mais poder
Trump oferece levantar sanções se Maduro deixar poder