Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1008 (2020-04-03)

Sexta-feira,3deabrilde2020 |Valor| 31

LIVRO AAAExcepcional AA+Altaqualidade BBBAcimadamédia BB+Moderado CCCBaixaqualidade CAlto risco

‘O AsnodeOuro’ trazrespostas dopassado

Romance doséculoIIdeLucioApuleiotratadopoderdastransformações.PorJoséCastello, para o Valor

WIKIPEDIA

Livro deApuleiorecolocaemcenaumapalavra queparecedesgastada:a esperança

“OAsnodeOuro”
LucioApuleio
Trad.:RuthGuimarães;Editora 34
480 págs.,R$ 88 AA+

Emhorasde
atordoamento,
nadamelhordo
querecorrera
experiênciasdo
passadoremoto,
quenosajudema
inverternossos
hábitosmentaiseareinventaro
presente.Énopassado,muitasvezes,
queofuturoseguarda.
Sóporissojáfazsentidoler—ou
reler—“OAsnodeOuro”, romancede
LucioApuleio,escritorromanodo
séculoIIdaeracristã,relançadoem
belaediçãobilínguepelaEditora34.
Trata-sedoúnicoromancedaliteratura
latinaquenoschegouinteiramente
preservado.Maiscélebredoqueele,do
“Satyricon”,dePetrônio,sónos
chegaram,porém,fragmentos.
OromancedeApuleiotem,
também,umsegundotítulo:
“Metamorfoses”.Muitosgrandes
livrosecoamhojenessenome.Ele
nãosóremeteaofamosolivro
homônimodeOvídio,poema
mitológicoescritonoano60antesde
Cristo,mastambémaoperturbador
“A Metamorfose”, contoqueFranz
Kafka(1883-1924)escreveuem1912.
Éumapalavraquehoje,noséculo
XXI,quandoapadronizaçãoeo
descartávelseproliferam,setorna
aindamaispotente.“OAsnodeOuro”
é,antesdetudo,umromancesobreo
poderdatransfiguraçãoeomodo
comoelapodesubvertereinverteros
cenáriosmaisgélidos.
NemoromancedeApuleio,nemo
livrodePetrônio,sãotãoantigos
quantoas“AventurasdeQuérease
Calírroe”,romancedeamorque
CáritondeAfrodísiasescreveuem
algummomentodasdécadas
seguintesàcrucificaçãodeCristo.
Maisqueosoutrosdois,porém,
“OAsnodeOuro”apostana

metamorfosecomouminstrumento

deenfrentamentoedesuperaçãodo

real.Emépocascomoanossa,quando,

apesardoavançoaceleradoda

tecnologia,nossentimosprisioneiros

darepetição,olivrodeApuleiomerece

umaleituraatenta—queserá,também,

muitodivertida.Elenostrazdevoltaa

crençanasrupturasenasreviravoltas,

recolocandoemcenaumapalavraque

hojepareceemdesgaste:aesperança.

Emsuabelaapresentaçãodolivro,

AdrianedaSilvaDuartenoslembra

que,emcontrastecomatragédiaea

poesia,oromanceéumgênerotardio,

eporissojánascemarginal.Poisapesar

detodososmovimentosmecânicosda

literaturacomercial—quehojeditaa

regranomercado—,oromance,ainda

querestritoacorajosasexceções,

continuaaserumgênerorebelde.

Essecarátermarginalprosseguiu

no“DomQuixote”, deMiguelde

Cervantes(1547-1616),oprimeiro

romancemoderno,enuncamaisse

perdeu.Contudo,sevoltamosaos

primórdiosenosdetemosem

Apuleio,issoaindanosespanta.

ComoassinalaMikhailBakhtin

(1895-1975)emumfamoso

comentárioagoratransformadoem

orelhadanovaedição, écom“OAsno

deOuro”, ecom atransformaçãodo

protagonistaLucioemumasno,que

aliteraturachegaàvidaprivada.A

metamorfosegaranteaopersonagem

umartifícioparaacessaraquiloque,

atéali,mesmonosgrandesclássicos

dopassado,estavavedado.

Aointroduzirumolharsecreto

sobreavidaíntima,Apuleiodescerra

umacortinasolene,que,antes,

encobriaoreal.Aoincluiroprivado

ondeantessóimperavaopúblico,ele

nosmostraqueépossíveldevassaro

mundo,acessarsuasentranhas,

penetrarseussubterrâneos,

desmontarsuasengrenagenseatése

divertircomtudoisso.

QuandoLucio,jánolivroXI,recebe

avisitadeCeres,mãedanatureza,

queoreconhececomodignodesua

proteçãodivina,enfim,étodoum

conjuntodeaventurasdispersase

provaçõessúbitasque,enfim,passaa

fazersentido. AsaventurasdeLucio

constituem,porfim,umainiciação.

EmumbreveensaiodeRuth

Guimarães,datadode1963,queos

editoresacrescentamatítulode

prefácio,aautoranoslembrada

advertênciadeApuleioaseus

leitores:“DaGréciaveioestahistória.

Atenção,leitor:elavai-tealegrar”.

Aalegriaquepercorreoespíritodo

leitorde“OAsnodeOuro”,

entretanto, nãotemrelaçãoalguma

comaanimaçãodistraídaealgo

anestesiantequetomacontados

leitoresnaépocadadiversão.A

alegriaaquinãoérelaxamento,nãoé

fuga,nemajudaadormir.Ela

empurraoleitor,comlevezaeperícia,

paraavida.Elaodesperta.

Tambémemsuavidaprivada,

Apuleiofoiacusadodeenvolvimento

comamagia—eessasuspeitagerou,

inclusive,umprocessomovidopelos

parentesdesuamulher,cujoamor

nãopassaria,segundoosacusadores,

doefeitodeumfeitiço.Parase

defender,Apuleioescreveuacélebre

“Apologia”,doano155.

Foiumhomemculto,formadoem

gramáticaeemretórica,quese

envolveucomasofísticaecomo

platonismo.Quando,nos11livrosde

“OAsnodeOuro”, eledescreveas

aventurasdojovemLúcio,

transformadopormagiaemum

asno,édesuaturbulentavida,um

tanto,queelefala.OlivrodeApuleio

podeserlido,então, comoum

romancedeformação,longo

percursoqueterminacomuma

soluçãoesotérica.

Soluçãoque,emvezdefecharas

portasdaaventura,aescancarapara

onovo.Transformaçõese

metamorfosesquehojenuncaforam

tãonecessárias.■

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