30 |Valor|Sexta-feira,3deabrilde2020
“Emummomento de
tanto obscurantismo
e culto à ignorância,
acreditamosqueera
urgente resgataras
ideiasdele”,dizo
editorRafael Valim
“A eledevomuito
intelectualmente”
da evai até FernandoHenriqueCardoso evá-
rios outros, baseadana lenga-lenga manipu-
ladora da corrupçãoapenasda políticacomo
questãoprincipaldopaís”,dizSouza.
Durantemuitotempo,FernandoHenrique
foio principaldiscípulodeFlorestan.Sob alide-
rançado mestre,oex-presidentetornou-seum
“sociólogode campo”, ou seja, um pesquisador
emlocaiscomofavelasebairrospobresdesdeos
anos 1950.Foi FlorestanquemensinouFernan-
do Henriqueafazer uma sociologia,duranteo
mestradoe odoutorado, apartir do olharde se-
toresnãodominantesdasociedade.
Comoseus mentoresnos temposde forma-
ção,ao lado de Florestanestavam os sociólogos
Fernandode Azevedo, tambémda USP, e o fran-
cês RogerBastide,com os quaiso ex-presidente
participoude pesquisasnos cortiçosda cidade
de São Paulo. “Sua influênciafoi decisiva.Não
apenascomoprofessorde muitosde nós, mas
comoíconedecomportamentomoraleintelec-
tual”,afirmaFernandoHenrique.
Sua relaçãocom Florestansemprefoi quase
depaiefilho.Apontode,quandoaditadurami-
litar (1964-1985)empurrouo entãojovempro-
fessorparaforadaUSPe,depois,paraoautoexí-
lio, em Paris, Florestanconvocouum substituto,
o hoje professoreméritoSedi Hirano,mas com
umaviso:“SeoFernandovoltar,vocêsai”.
Florestansó não sabiaque teriamenosin-
fluênciasobreo seu orientandoquandoele fos-
se para a práxis.No campopolítico, Fernando
HenriquerecusouoPartidodos Trabalhadores,
partidoque teve em Florestanum dos fundado-
res e pelo qual foi deputadofederal.Oaluno
chegouao cargomaisalto do país no ano da
mortedo mestre.Mas,àquelaaltura,oentão
presidentejáoptaraporumaagendasocialbas-
tantediversadas preocupações políticasàs
quaisFlorestanseriafielatéoúltimodiadevida.
Um dos principaispontosdessaagendaera a
transformaçãosocial.A revoluçãosocialera um
de seus temasmaisfrequentes.Toda a sua pro-
dução—eo sleitorespoderãoverificarnasnovas
ediçõesdacoleção—estáimpregnadadeumes-
tilo de reflexãoque questionaarealidadesocial
e colocaem xequeuma determinadasociologia
que insistiaem interpretaressa realidadecomo
natural.Éumquestionamentoapartirdaraizda
sociedadebrasileira,istoé,opapeldeíndios,eu-
ropeus,negros,imigrantesesuasmetamorfoses
emclassessociaisoucastasapartirdaemergên-
ciadocapitalismolocal.
Florestan,assim,estabeleceum diálogocom
outrossociólogos,comoBuarquede Holanda,
Freyree tambémSílvioRomero(1851-1914)e
OliveiraViana(1883-1951)etesesdeCaioPrado
Júnior (1907-1990), Euclides da Cunha
(1866-1909)ou ManoelBomfim(1868-1932)
comose perguntasse,a todo momento, a esses
autores:seráqueoBrasiléissomesmo?
“Ele vai semprealémdo que está dadocomo
estabelecido, comoexplicado. Ao submetero
real e o pensadoàreflexãocrítica,descortinaas
diversidades,desigualdadese antagonismos,
apanhandoas diferentesperspectivasdos gru-
poseclasses”,definiuoutrodeseusseguidores,o
sociólogoOctavioIanni(1926-2004).
Esseestilodepensarforadopadrãodecivili-
zaçãodominante —ou umaimaginaçãoso-
ciológicamuitopeculiar—éempreendidopa-
ralelamenteaumaconstantedefesadoensino
públicoeda construção das balizasda profis-
são de sociólogo. Sua imaginação conseguiu
definirum relacionamento possível, no dizer
de AntonioCandido,entreodesafioda objeti-
vidadecientíficaeamilitânciapolítica.
A“escola” de FlorestanFernandes, diferen-
temente do vitupério dos críticos ou do que
algunspoderiam dizer hoje, não permitia
ideologiaem sala de aula.Todos os argu-
mentosexigiamumaprovacientífica, mes-
mo que a verdade objetiva fossedescartada.
Inúmeras e relevantessão as obras sobreo
papeldo sociólogo e sua indispensável parti-
cipação na consolidação da democracia, co-
mo, principalmente, “FundamentosEmpíri-
cos da Explicação Sociológica”e“A Sociologia
numaEra da Revolução Social”, que integram
acoleçãodaContracorrente.
“Duranteos anos da ditaduramilitar, foi um
ativoparticipantede movimentosde defesada
educaçãopública,dos direitoscivis,políticose
sociaise da democracia”, afirmaa professora
AngelaAlonso,daUSP.“Florestansetornouuma
referênciadupla,intelectualepolítica,paraaso-
ciologiabrasileira.Ao longode sua carreiraaca-
dêmicatornou-seum dos principaisconsolida-
doresdasociologiauniversitárianoBrasil”.
Opúblicopoderáconhecerou recordaro
pensamentosociológicocríticode Florestane
entendermelhoros princípiospara aexistência
de uma democraciapujante,pois as palavras do
autor, comoresumiuAntonioCandido, “são co-
moapoesiadeMáriodeAndrade:oEuquefalaé
umserindividualmasétambémoBrasil”.
L
eia trechos de entrevista com o
ex-presidente Fernando Henrique so-
bre ainfluência de FlorestanFernan-
desemsuaproduçãointelectual.
Valor:Qualo papeldeFlorestanFernandes
paraassuaspesquisasdemestradoedoutora-
mentosobrea sociedadeescravocrata?
FernandoHenriqueCardoso:A orientação de
Florestan Fernandesfoi fundamentalpara nossas
pesquisassobreasociedade escravocrata e os ne-
gros, inclusive os preconceitos sobreeles, ao Sul
do país. Pesquisas minhas,de Octavio IannieRe-
natoJardimMoreira. Eu participaradapesquisa
feita em São Paulo epatrocinadapela Unesco so-
bre esses temas, sob adireção de RogerBastide e
Florestan. Devoter nos meus arquivos os comen-
tários escritos por Florestan, com tinta azul esver-
deada, sobre as hipóteses da pesquisa paulistana,
bem comocomentários que fez àminha tese de
doutoramento sobrea escravidãono Rio Grande
doSuleospreconceitosgaúchossobreosnegros.
Valor:Quala influênciadeleparao senhorde-
senvolverumasociologiasegundoa visãodese-
toresnãodominantes dasociedade?
FernandoHenrique:Sua influênciafoi deci-
siva. Não apenascomoprofessorde muitos
de nós, mas comoíconede comportamento
moraleintelectual.
Valor:ComoFlorestaninfluenciounaescolha
de campos de pesquisa,comocortiçose favelas?
FernandoHenrique:O modelo de pesquisa,
nos cortiços, favelas e bairros popularesnos foi
dadopelareferida pesquisa em São Paulo. Na
época, estavam na modaos estudos “de comu-
nidades”, sobretudo nosEstadosUnidos. Flo-
restan viu com a pesquisa sobreos negros em
SãoPauloaoportunidadedefazeraquioqueos
sociólogosamericanos haviam feito em Chica-
go. Eu aprendi a pesquisar com ele e Roger Bas-
tide (meuprimeiro trabalhode campofoi so-
bre umbanda em São Paulo eemAraraquara).
Íamosao campo,sem nos limitarmos às leitu-
ras.Aprendíamoscomaspessoasquepesquisá-
vamos,tantoquantocomoslivros.
Valor:Quala importânciadessasreediçõesdos
principaislivrosdelenestemomentodo país?
FernandoHenrique:Se houvealguémque
me influenciou na universidade, foi Flores-
tan Fernandes.Aele devomuitointelectual-
mente.Acreditoque umanovaediçãode
suasobrasmostraráo trabalhadorintelec-
tual incansável que foi. E tomaraque mais
depoimentosde seus ex-alunoseassistentes
permitammostraro quanto nós eas ociolo-
gia brasileiradevemosa ele.(JF)■
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