Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1008 (2020-04-03)

(Antfer) #1

34 |Valor|Sexta-feira,3deabrilde2020


Leituras

para a

quarentena

(1)

“D


ez Drogas”, Thomas
Hager(Todavia,334
págs.,Antônio
Xerxenesky)—Numa
épocadedescrençanoconhecimento,
oquesóagravaapandemiade
coronavírus,ésemprebomconhecero
longocaminhoentrehipótese
científica—àsvezescontraintuitiva—e
curaoucontroledasmaisvariadas
doenças.Otítuloéumresumo:Hager
falademaisquedezsubstânciase
métodosdescobertospor
pesquisadores,dosopióidesedasulfa
aosantipsicóticoseestatinas.São
históriaspermeadaspelofator
humano,tantoomelhordele
(inteligência,desprendimento,
solidariedade)quantoopior
(ganância,inveja,trapaça).Uma
qualidadedotexto,queopõena
tradiçãodeobrascomo“OImperador
deTodososMales”,deSiddhartha
Mukherjee(sobreahistóriadocâncer),
éodistanciamentoqueconsegue
manterdastentaçõesextremistasque
envolvemseuobjeto:“Nãoéumlivro
quevaideixarosfabricantesde
medicamentosfelizes”,escreveoautor
naintrodução.“Ouoslobistasda
indústriafarmacêutica.Ouosativistas
contráriosaela(...).Nenhumadrogaé
boa,nenhumadrogaémá.Todassão
ambasascoisas.”
“Imunidade”,EulaBiss(Todavia,
206págs.,traduçãodePedroMaia
Soares)—Aautorateveaideiado
livroaosetornarmãee,claro,passar
atemerpelasaúdedoseubebê.Sua
pesquisaresumeoquesesabehoje
sobreosistemadedefesadonosso
corpo,repercutindoissoemtermos
culturais,comtrechosespecialmente
interessantessobrevacinas.Alémde
motivosreligiosos,ideológicosouda
puraignorância/má-fé,arejeiçãoao
métododeinocularagentes
patógenosenfraquecidosoumortos
numindivíduosaudávelpodese
basearnaincompreensãodeum
paradoxo:“Asvacinaspertencem
àquelelugardetransiçãoentreos
sereshumanoseanatureza—um
campoaparado(...)cercadopor
bosques.Avacinaçãoéumaespécie
dedomesticaçãodeumacoisa
selvagem,namedidaemqueenvolve
nossacapacidadedeatrelarumvírus

edomá-locomoumcavalo,massua
açãodependedarespostanaturaldo
corpo(...).Oaspectomais
antinaturaldavacinaçãoé
que,quandotudocorrebem,
elanãoprovocadoençanem
produzummal.”
SusanSontag—Hámuitosensaios
sobrearelaçãoentresaúdeecultura,
ousaúdeepolítica.SeosdeMichel
Foucaultsãoasmaioresreferências
dosúltimoscinquentaanosnotema,
osdeSontagtalvezsejamosmais
conhecidosforadaacademia.Emsua
misturatípicadedistanciamentoe
ênfase,esnobismoepaixão,elase
inspirouemexperiênciaspessoais
paraescreverdoislivrosimportantes:
“A DoençacomoMetáfora”(1978),
quediretaouobliquamentetratado
câncerqueaautoraenfrentoupor
décadas(equeacabariapormatá-la
em2004),e“AidsesuasMetáforas”
(1989),produzidonoaugeda
epidemiaquevitimoumuitosdeseus
amigospróximos.Osdoistextos
podemserencontradosnuma
mesmaedição(Companhiadas
Letras, 168 págs.,traduçõesdePaulo
HenriquesBritoeRubens
Figueiredo).Neles,edescontando
trechoshojesuperadospelaevolução
científicadesdeapublicação,háum
libelocontraoirracionalismoquedá
amalesfísicosdimensõesculturais(a
tuberculosecomoextensãodo
romantismo,ocâncercomo
consequênciadarepressão)e/ouusa
umalinguagemqueculpaopróprio
doente(quandoelenãovencea
“guerra” contraumvírusoubactéria,
porexemplo).“Todosquenascem
têmduplacidadania,noreinodos
sãosenoreinodosdoentes”,escreve
Sontag.“Poréméquaseimpossível
fixarresidêncianoreinodosdoentes
semtersidopreviamente
influenciadopelasmetáforas
lúgubrescomque[ele]foipintado.”
AndrewSolomon—Autorquetem
pontosemcomumcomSontag,entre
elesaexperiênciapessoalcomos
assuntosdequetrata.Suaabordagem
incluiumtrabalhojornalísticomais
amplo,porém,alémdeuma
atualizaçãoimportantesobreos
avançoscientíficosdosúltimosvinte
anosnasáreasqueresolveuinvestigar.

Em“ODemôniodoMeioDia”
(CompanhiadasLetras,584págs.,
traduçãodeMyriamCampello),a
depressãodaqualoautorsofreéusada
parailuminaraspectosvariadosda
culturacontemporânea.Já“Longeda
Árvore”(CompanhiadasLetras,962
págs.,traduçãodePedroMaiaSoares,
DonaldsonM.GarschageneLuizA.de
Araújo),emparteescritonaépocaem
queeledecidiuadotarumacriança
juntamentecomseuparceiro,éum
estudosobrefilhosmuitodiferentes
dospais—porteremalguma
deficiênciafísica/mentalou
característicadecomportamentofora
docomum.Emambos,assimcomoem
várioslivrosrecomendáveisdessalinha
(como“MeusTemposdeAnsiedade”,
deScottStossel),oconceitodedoença
setornaindissociáveldodeidentidade.
“Massópodemosverumase
obscurecermosaoutra”, dizSolomon.
“A políticadaidentidaderefutaaideia
dedoença,enquantoamedicina
ludibriaaidentidade.Ambassaem
diminuídascomessaestreiteza.”
ThomasMann—Sefalamosem
identidadeedoença,éinescapável
citarosromances—grandesemmais
deumsentido—queoautoralemão
escreveuarespeito.Em“A Montanha
Mágica”,umsanatóriode
tuberculososéocenáriode
discussõespolíticasqueespelhamo
declíniodohumanismonaEuropae
apioradasaúdedoprotagonista.Em
“DoutorFausto”, asífilisésintomado
pactoqueumcompositorfazcomo
demônio,alusãoaoqueocorreuna
Alemanhaduranteonazismo.Masé
em“MorteemVeneza”, umtexto
curto(NovaFronteira,traduçãode
EloisaFerreiraAraujoSilva,publicada
juntocomanovela“TonioKröger”
numaediçãode162págs.),que
encontramosreferênciasmaisdiretas
aoquevivemoshoje.Oprotagonista
éumescritorqueabandonaseus
ideaisdedisciplinaapolíneapara
viverumamorpedófilo,platônicoe
autodestrutivo—fisicamente,
inclusive—numacidadequeelesabe
estarinfestadapelacólera.Ossinais
daepidemia,ignoradosporeleem
nomedeumapaixãoque“comoo
crime,nãoseadaptaàordem
estabelecida”,geramefeitos

Lançamentos e clássicos


sobre doença,saúdee


cultura. PorMichelLaub


OUTROSESCRITOS


MichelLaub,jornalistae autor dos ro-
mances“Diárioda Queda”e“O Tribunal
da Quinta-Feira”, escreve neste espaço
quinzenalmente

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