O Estado de São Paulo (2020-04-04)

(Antfer) #1

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H8 Especial SÁBADO, 4 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


MAIS
LONGA VIDA
Autora:
Marina
Colasanti
Editora:
Record (160
págs, R$ 39,90
livro, R$ 29,90
e-book)

Marcelo Rubes Paiva


POESIA


l]


FABIO MOTTA/ESTADÃO – 27/9/2017

PARA RELEMBRAR E


VALORIZAR O PASSADO


Marina Colasanti lança o fascinante livro ‘Mais Longa Vida’


P


ragas estão entre nós desde
tempos bíblicos. Quando os
primeiros homens e mulheres
decidiram seguir o Norte, rodear o
Mediterrâneo, se dividir em levas a
caminho do Oriente e Ocidente, leva-
ram junto seus companheiros mais
íntimos, adaptados por conta de mi-
lhões de anos de evolução em conta-
to com outros animais, que continua-
vam em estado de mutação: caspas,
piolhos e vírus.
Rotas da seda geravam comércio
de especiarias e doenças. Quando
Constantinopla foi invadida enfim pe-
los turcos, interrompendo o comér-
cio mundial, as caravelas portugue-
sas avançaram pelo Atlântico Sul e
Índico e, pela primeira vez, juntaram
biomas do Hemisfério Norte e Sul e
de três florestas tropicais, a do Sudes-
te da Ásia, a africana e a brasileira.
Com isso, os vírus de um ambiente
viajaram pelas entranhas em carave-
las pelos continentes e contamina-
ram povos distantes ou há milhares
de anos isolados. Malária, febre ama-
rela e a mortal, que se transformou
em arma de guerra, varíola, até a cas-
pa, atacaram os nativos.

Os indígenas do Novo Mundo foram
dizimados por uma arma mais letal que
ferro e chumbo de conquistadores espa-
nhóis e portugueses: o vírus da varíola,
além da cólera, gripe, sarampo, tifo, pes-
te bubônica. Conquistadores deixa-
vam roupas imundas para os indígenas
levar. Nelas, doenças.
A aglomeração urbana é sinônimo de
epidemia. Em Londres, pessoas de um
bairro, que colhiam água de uma mes-
ma fonte, começaram a morrer. Era a
cólera, entre 1817 e 1823, herdada de co-
lônias como a Índia, doença que por si-
nal continua ativa e visitou o Brasil
anos atrás.
O saneamento passou a ser prioritá-
rio em cidades esvaziadas como Paris e
Londres, o Estado se fortaleceu, nasceu
uma burocracia fortemente ligada à saú-
de pública. Os talheres e a etiqueta nas
refeições, antes restritos a aristocratas,
viraram obrigação.
Em 1917, e sobre ela muito tem se fala-
do, a gripe espanhola, que começou nu-
ma base militar americana, varreu a Eu-
ropa durante a Primeira Guerra, levada
por soldados ao front de batalha. Emba-
lagens descartáveis, garrafas e enlata-
dos. No fim dela, o mundo viveu um

desbundo: Era do Jazz, República de
Weimar. Tudo era possível. Sexo livre,
festas, drogas, porres, poesia no ar. So-
brevivemos? Bora, curtir.
Tivemos sífilis e tuberculose. Temos
dengue, febre amarela e malária. Recen-
temente, tivemos contato com novos
inimigos, vindos da África e Ásia, como
HIV, ebola, H1N1, Sars, chicungunha,
zica. Vivemos sob a ameaça constante
de uma pandemia avassaladora. Sobre-
vivemos a todas elas, e o mundo muda,
na geopolítica e nas nossas cabeças.

O HIV trouxe dilemas morais. Sua
principal via de contato é o sexo e a se-
ringa de uma agulha. Homossexuais e
viciados foram punidos, como os ido-
sos hoje, como se fossem os responsá-
veis pela doença. “Problema deles que
são degenerados”, pensavam os segui-
dores de Reagan. A Guerra Contra as
Drogas, que não deu em nada, começou
ali. Hoje se diz: “Problema deles que são
velhos e têm doenças preexistentes”.

O mundo já mudou. No começo da
crise da covid-19, vejo gente se perdoan-
do, reatando amizades, valorizando o
menos, repensando a economia global,
a desigualdade. Vejo pais que se volta-
ram aos filhos, aos livros. Vejo gente se
dedicando a afazeres domésticos antes
terceirizados, reaprendendo a cozi-
nhar, valorizando cada grão de comida,
gole de bebida.
A arqueóloga portuguesa Joana Frei-
tas explica: “O homem é um exemplo
de superação nas linhas evolutivas.
Não éramos fisicamente dominado-
res, nem estávamos no topo das ca-
deias alimentares. Éramos caçadores,
mas presas fáceis também. A evolução
do nosso cérebro, as capacidades inte-
lectuais e de cognição, deu-nos a vanta-
gem. Durante milênios, feitos de avan-
ços e retrocessos, a espécie humana
prosperou e ocupou os quatro cantos
do planeta. A uma capacidade adaptati-
va gigante juntou-se a sobrevivência
assente na coesão de grupo. Há cerca
de 10.000 anos, começam a aparecer
as primeiras sociedades sedentárias
possíveis pela domesticação, embora
incipientes de plantas e animais. Aqui,
nesse preciso momento, o homem assi-
nava com o destino. Populações cres-
centes e fixas num local, convivência
diária com os animais domesticados e
todos os parasitas a eles associados,
formaram as condições perfeitas para

as primeiras epidemias”.
Joana lista as pandemias que mu-
daram o curso da História, e mortais,
e entre elas está a peste bubônica,
em Roma, entre 527–565 d.C., sob o
comando do imperador Justiniano.
Resultado. O império romano en-
trou em colapso. Nunca mais foi uni-
ficado. A data representa o início da
era negra da época medieval. O me-
do da realidade mergulhou o Ociden-
te no transcendental e na idade das
trevas, a Idade Média. Deus castiga-
va aqueles que não tinham fé ou ado-
tavam uma religião pagã. A Igreja Ca-
tólica se expandiu. Deu na Inquisi-
ção.
A peste negra, entre 1343 e 1351, ata-
cou a Ásia e Europa e matou, segun-
do Joana, cerca de 80 milhões de pes-
soas. Afetou toda a economia mun-
dial. Porém o caminho foi oposto. A
medicina rompeu os tabus do catoli-
cismo e passou a tratar o corpo huma-
no como algo a ser investigado, não
como a face de Deus. Deu na Renas-
cença.
Epidemias trouxeram trevas e ilu-
minismo. Escureceu e acendeu. Nos
bloqueou ou nos expandiu. Uma das
nossas virtudes é a de ganhar sabedo-
ria de experiências negativas. Nós va-
mos superar essa, com união e sereni-
dade. E deixemos a estupidez falan-
do sozinha.

ESCREVE AOS SÁBADOS

Ubiratan Brasil


Marina Colasanti precisou ter
paciência – em 2016, quando en-
tregou um livro de poemas
inéditos, Mais Longa Vida , à edi-
tora Record, a crise do mercado
editorial enxugou a lista de lan-
çamentos e a obra, uma podero-
sa viagem em versos, aguardou
outro momento. Que seria jus-
tamente agora, novamente sob
novo infortúnio – desta vez, a
pandemia do coronavírus. Mas
o livro, resistente como sua au-
tora de 82 anos, pode ser enco-
mendado pela internet, tanto
impresso como digital.
O esforço é válido, pois Mais
Longa Vida
é um dos mais fasci-
nantes trabalhos de Marina Co-
lasanti, cuja escrita delicada tra-
ta de temas como família, amor,
perdas, viagens, saudade. Na
verdade, como já fizera em ou-
tras obras (como Minha Guerra
Alheia
), a poeta usa lembranças
pessoais para construir uma
poesia que tanto enaltece como
convida o leitor a pensar.
“Esse é exatamente o mesmo
livro que finalizei em 2016,
quando originalmente seria edi-
tado”, conta Marina ao Estado ,
em uma conversa telefônica,
desde sua casa, no Rio, onde pas-
sa o momento de reclusão pelo
coronavírus ao lado do marido,
o também poeta e crítico Affon-
so Romano de Sant’Anna. “Não
mudei nada, pois, quando sai da
minha mesa, está pronto. Há
pintores que refazem suas te-
las, mas eu não quero refazer
meus passos.”
O ponto final, no entanto,
não chega sem antes que se tri-
lhe um longo caminho. “Poesia
é um trabalho de decantação,
necessita de tempo, de material
guardado na gaveta”, ensina.
“O que é ótimo em um dia, é
ruim três dias depois.”
De fato, em Mais Longa Vida ,
Marina aposta no lirismo e nas
recordações mistas, visões dis-
tintas que só alimentam um
baú já repleto de imagens múlti-
plas que seria sua obra. E, ainda
que seja um livro de poesia, cuja
leitura poderia ser aleatória, o
recomendado é seguir a ordem
das páginas, pois os versos as-
sim colocados incentivam o lei-
tor a criar imagens, uma sequên-
cia de belas imagens que pro-
duz o efeito encantador de mos-
trar fragmentos de uma vida.
“Parece que faço coisas dife-
rentes, mas, se alguém compa-
rar, há uma linha que une todos
meus trabalhos”, reconhece a
poeta, que rejeita o saudosis-
mo. “Não tenho saudades de na-
da – nunca quis me manter jo-
vem. Olho para o passado com
o olhar do presente.” Desponta
aí mais uma qualidade de Mais
Longa Vida
e sua poesia sem li-
rismo exagerado. “A obra guar-


da o mistério de um livro sem
mistério. A simplicidade do que
é altamente complexo. O mais
no menos, a luz nas trevas, o
princípio no fim”, observa, no
texto de apresentação, o crítico
e poeta Marco Lucchesi.
Não é indispensável, mas aju-
da na leitura conhecer um pou-
co da trajetória de Marina Cola-
santi. Seus primeiros dez anos
começaram e terminaram en-
volvidos por climas de guerra –
a poeta nasceu em Asmara, na
Etiópia (então Eritreia). Seu
pai, que nutria uma simpatia pe-
lo fascismo, ajudava o regime es-
timulando investimentos italia-
nos na colônia africana. Foi se-
guindo tal ideal que a família vi-

veu ainda em Trípoli, na Líbia,
antes de voltar para a Itália,
quando eclodiu a Segunda Guer-
ra, em 1939.
A vinda para o Brasil só acon-
teceu em 1948, quando uma Eu-
ropa destroçada buscava se

reerguer. Essa fase da existên-
cia é lembrada em Minha Guer-
ra Alheia (Record), em que Mari-
na tentou evitar a simples repro-
dução de um clima de guerra –
segundo ela, mesmo durante
um conflito tão terrível como
aquele, o ser humano precisava
sobreviver, o que é notado na
deliciosa descrição do cotidia-
no, mantido à risca ainda que
sob chuva de bombas: “A guerra
bafejava no nosso cangote. A vi-
da, porém, teimava em conti-
nuar. Entre cuidar das crianças
e cozinhar almoço e jantar (...),
minha mãe, sem nenhum gosto
pela culinária, ia ao cinema”.
Além do dom da escrita, Mari-
na desenvolveu o gosto pelas ar-

tes plásticas, aprimorado ao la-
do de seu marido, Affonso, um
dos grandes críticos de visuais
do País. “Sempre incluo um poe-
ma sobre pintura em meus li-
vros”, conta ela. “É uma das mi-
nhas paixões. A pintura é parte
integrante do meu olhar.”
As artes pictóricas são tradi-
ção de família, uma vez que o
avô era crítico e historiador de
arte e um tio trabalhou como
cenógrafo. O olhar arguto,
aliás, logo se transformou em
ação e Marina começou a pintar


  • com o tempo, seus quadros
    começaram a estampar a capa
    de seus livros, como acontece
    em Mais Longa Vida , ilustrado
    por um óleo sobre tela que retra-
    ta um belo perfil de mulher.
    “Não faço uma arte moderna,
    não adoto a textura – meu perfil
    é mais renascentista, gosto de
    pintar com bico de pena”, obser-
    va Marina, que se tornou uma
    pintora bissexta depois que um
    marchand mal-intencionado
    prometeu vender suas telas e se
    mandou para a Bahia.
    Mágoa ficou, não nega. Mas a
    poeta não se perde em lamú-
    rias. “Depois dos 80 anos, o tem-
    po fica mais curto, há um limite
    que condiciona a ação. Outro
    dia, achei um caderno em que,
    décadas atrás, comecei a fazer
    uma tradução de O Leopardo , do
    Lampedusa. Escrevi a mão. Ho-
    je não faria isso.”


POEMAS

Caderno 2


Uma das nossas virtudes
é a de ganhar sabedoria
de experiências negativas

Marina.
Poesia traz o
raro diálogo
com a vida

Aprendendo com a epidemia


“T


rês vezes
minha vida
foi tirada do...

...trilho em que seguia
e posta em outro.
Três vezes
me adaptei
não sem esforço.
Agora, minha casa me basta
e seus gerânios
mas sangra em mim um difu-
so desejo de mudança
que me leva a buscar
atrás dos vidros de alheias
casas
em alheios países
a sombra da mulher que se-
ria eu
vivendo uma das vidas
que perdi”
(Difuso Desejo)

“Herbívoro não sou.
Cabeça baixa
e de macia boca
acostumada a mastigar pala-
vras
rumino o tempo meu
na mó dos dentes
e abrigo nos desvãos
o sangue quente.”
(Como se Fosse, Sem que)
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