O Estado de São Paulo (2020-04-05)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:C-11:20200405:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2020 Especial H11


Leandro Karnal


l]


THE NEW YORK TIMES


É o aniversário de 250 anos de
Beethoven e salas de concertos
de todo mundo programavam
apresentar – mais do que de cos-
tume– suas nove sinfonias.
Mas, com a suspensão das tem-
poradas por conta da pande-
mia, nós, críticos musicais, re-
solvemos assumir a tarefa e
criar o ciclo dos sonhos, com
nossas gravações favoritas de
cada uma das sinfonias. Havia
apenas uma regra: maestros e
orquestras poderiam aparecer
apenas uma vez.


Sinfonia nº 1. Beethoven tinha
29 anos quando, em 1800, sua
Sinfonia nº 1 estreou em Vie-


na. Apesar de sua reputação es-
tar crescendo, uma sinfonia
era um outro tipo de afirma-
ção artística, e esta peça exala
o frescor e a imaginação de al-
guém que começava sua traje-
tória. Amo a performance de
1957 de Otto Klemperer com a
Philharmonia Orchestra por-
que eles fazem a obra soar tão
grandiosa, até majestosa, en-
quanto sutilmente mostram
seu humor e sofisticação. (An-
thony Tommasini)

Sinfonia nº 2. Construída de
forma impecável, a Segunda
Sinfonia é uma de suas obras
mais subestimadas, talvez por-
que seu caráter lírico e nostálgi-
co não seja exatamente o que
esperamos da imagem angus-
tiada do compositor. Claro, a
sinfonia, estreada em 1803,
tem sua cota de volatilidade

dramática, mas é predominan-
temente alegre e espirituosa. A
gravação de Roger Norrington
com os London Classical Pla-
yers ofereceu modelo para as
gravações historicamente in-
formadas, corrigindo o peso
da moda romântica predomi-
nante na metade do século 20.
Sua Segunda Sinfonia tem algo
solar que brilha durante toda a
obra. (Joshua Barone)

Sinfonia nº 3. “Por causa do
tempo inclemente”, escreveu
certa vez o comediante Kurt
Tucholsky, “a revolução ale-
mão acontece na música”. O
primeiro tiro de tal revolução
ressoou em 1803, na estreia da
Sinfonia nº 3 de Beethoven,
apelidada de Eroica. Começan-
do com as proporções épicas
do primeiro movimento, esta
obra rasga o livro de regras da

sinfonia do período clássico.
Na gravação de 1966 de Leo-
nard Bernstein, com a Filar-
mônica de Nova York, os acen-
tos chocantes, colocados me-
tricamente nos lugares erra-
dos, soam quase literalmente
como se alguém estivesse ras-
gando papel. São decididos, na-
da sentimentais, rápidos. O an-
damento é tão brusco, a articu-
lação das cordas tão ágil, que o
movimento parece acontecer
em meio a um redemoinho ex-
citante de confetes. Mas estes
momentos apenas tornam
mais profunda a humanidade
desta interpretação. (Corina
da Fonseca-Wollheim)

Sinfonia nº 4. Bem, uma delas
tinha que ser a menos popular.
A Sinfonia nº 4 não é tanto o
patinho feio entre as sinfonias.
Escrita poucos anos depois da
Terceira e durante o trabalho
na grandiosa Quinta, a Quarta é
vivaz e genial. Parece-se com
um esconde-esconde sinfôni-
co, com seus ritmos ousados.
Apesar, e por causa, disso é ado-
rável. E Bernard Haitink e a Sin-
fônica de Londres oferecem um
argumento caloroso e gracioso
em favor da obra, com uma exci-
tação gerada por um tocar ho-
nesto em vez de exageros em
termo de velocidade ou volu-
me. (Zachary Woolfe)

Sinfonia nº 5. “Dun-dun-dun
DUN”. E então a meia hora se-
guinte repleta com temas inde-
léveis e um final triunfante.
Em resumo, a sinfonia mais fa-
mosa de todos os tempos. Co-
mo melhor ouvi-la, duzentos
anos depois? Há interpreta-
ções velozes e refinadas, como
a de Carlos Kleiber com a Filar-
mônica de Viena. Mas tente a
diabólica versão lenta de Pier-
re Boulez à frente da New Phi-
lharmonia Orchestra. Aquelas
primeiras quatro notas podem
soar túrgidas, erradas. Mas a
angústia tem um propósito dra-
mático, com um poder emocio-
nal peculiar. Mais tarde, quan-
do os trompetes retornam,
eles tem gravidade mahleriana
em vez de soar como se corres-
sem para uma festa que já co-
meçou. A coda é esmagadora.
(Seth Colter)

Sinfonia nº 6. Estreada ao lado
da turbulenta Quinta, em 1808,
a Sexta, apelidada de Pastoral,
costuma surgir como uma paisa-
gem bela mais inofensiva – ou,
pior, como um tedioso passeio
pelo campo. Confie em Carlos
Kleiber para afastar as teias de
aranha. A Pastoral de Kleiber,
gravação feita por seu filho da
única vez em que regeu a obra, é
um feito maior. É uma experiên-
cia de vigor chocante, dança li-

vre e perigo verdadeiro; é rápi-
da e ritmicamente insistente,
mas flui com tal liberdade nos
últimos momentos que ganha
qualidade quase transcenden-
te. (David Allen)

Sinfonia nº 7. Tocada pela pri-
meira vez em 1813, a Sétima exi-
ge tanto poder quanto precisão,
selvageria em seu final tempera-
da com a sensibilidade do dolo-
rido Allegretto. E nem mesmo
as gravações de Kleiber têm a
força de Manfred Honeck e da
Sinfônica de Pittsburgh. O que
Honeck oferece é uma interpre-
tação com “i” maiúsculo, algo
que falta na maior parte das lei-
turas daqueles que utilizam or-
questras modernas para tocar
Beethoven. Honeck parece ir
além disso tudo, oferecendo
uma versão eletrizante da peça
mais puramente excitante de
Beethoven. (David Allen)

Sinfonia nº 8. É uma pena a
Sinfonia nº 8 estar entre a séti-
ma e a imensa e mortal Nona.
Mas esse item de 1814 é uma ma-
ravilha em termos de concisão e
mascara sua inovações por trás
de certa dose de ironia. É uma
obra que, quando ouvida de per-
to, revela enigmas que valem a
audição contínua. Como o re-
cente ciclo de John Eliot Gardi-
ner no Carnegie Hall mostrou,
ele poderia estar em qualquer
lugar desta lista. Mas sua grava-
ção da oitava com a Orchestra
Révolutionnaire et Romanti-
que é particularmente revelado-
ra, seus tempos abruptos ideais
para esta sinfonia de tirar o fôle-
go – e que, radicalmente, não
tem um movimento lento.
(Joshua Barone)

Sinfonia nº 9. Poucas obras fo-
ram mais centrais para a identi-
dade artística de Furtwängler
que a Nona sinfonia de Beetho-
ven. Ele a interpretou em uma
performance ao vivo com a Fi-
larmônica de Berlim, com par-
te das celebrações pelo aniver-
sário de Hitler, em 1942. E a
Nona de Furtwängler da qual
gosto também carrega alguma
bagagem política: aconteceu
em 1951 para marcar a reabertu-
ra do Festival de Bayreuth de-
pois da Segunda Guerra. Ape-
sar da interpretação ser um
pouco áspera em alguns mo-
mentos, a performance é mag-
nífica, com a orquestra e o co-
ro do festival e um elenco este-
lar: Elisabeth Schwarzkopf,
Elisabeth Hongen, Hans Hopf
e Otto Edelmann. Furtwän-
gler às vezes opta por tempos
audaciosamente contidos, co-
mo no começo do primeiro mo-
vimento, repleto de suspense
e intensidade. O scherzo é den-
so e dinâmico; o movimento
lento, radiante. A Ode à alegria
tem o fervor de grandes perfor-
mances de ópera. (Anthony
Tommasini) / TRADUÇÃO JOÃO
LUIZ SAMPAIO

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Caderno 2


U


m jovem estudante de histó-
ria aprende logo que a manei-
ra como lemos o amor tem
raízes concretas no passado. Amor
não possui essência atemporal. As
canções de menestréis medievais,
especialmente na Provença france-
sa, os sonetos humanistas de Petrar-
ca, a idealização de Beatriz por Dan-
te em Florença e, acima de tudo, o
Romantismo dos séculos 18 e 19 fo-
ram vigas mestras para que se crias-
se uma gramática do amor como
nós o entendemos. Os autores natu-
ralizaram a idealização da pessoa
amada, a ideia de completude que
só existiria na presença dela ou de-
le. Mais: cria-se o desejo por uma
infecção perturbadora que arrasa
com a racionalidade.
A sociedade europeia inventou o
vocabulário do amor. Funciona co-
mo desejo de grávida: em círculos
humanos que nunca ouviram a hipó-
tese de uma mulher ter vontades
exóticas durante a gestação, o im-
pulso simplesmente não ocorre.
Em grupos em que a menina cres-
ceu ouvindo que toda mulher pode
demandar sardinhas fritas de ma-

drugada e que isso é aceitável, a gula
bizarra eclode como uma forma de po-
der temporário. O mesmo ocorre com
a adolescência: centenas de socieda-
des a ignoram e onde não existe o con-
ceito de adolescente-problema, onde
domina um único ritual de passagem
da etapa infantil para a vida adulta, de-
saparece a longa crise entre a infância
e a maturidade.
Já imagino a contestação: tudo en-
tão seria apenas convenção social?
Não foi esse o meu objetivo. Quero for-
mular uma reflexão que não é unâni-
me entre historiadores. Existe o dese-
jo sexual. Os hormônios descarrega-
dos no corpo de alguém após a infân-
cia são quimicamente detectáveis.
Não se trata de um delírio, é um fato
biológico. A partir disso, existem con-
venções sociais. Em uma sociedade na
qual o código moral e religioso estabe-
lece regras claras, o sentimento sexual
será sentido como ruim, incômodo ou
perverso. Da mesma forma, onde flo-
resce o discurso do amor e da paixão
como referência cultural, é comum
perguntar-se aos jovens por quem
ele/ela estão apaixonados. Entre ami-
gos púberes, a paixão é esperada e in-

centivada. Os filmes e os livros mos-
tram como o amor vence todos os obs-
táculos, como ele dá sentido à existên-
cia. Agora vem a pior de todas as cria-
ções culturais: existiria uma metade,
uma alma gêmea, um ser perfeito que
se adapta, convexamente, ao meu côn-
cavo. Tal encaixe mágico ganha tons
de destino: o formato das peças foi pre-
parado há muito. Assim, o desejo se-
xual (que já passa por mediações cultu-
rais enormes) vai sendo associado a
uma paixão específica. Muitas socieda-
des tratam o campo erótico de outra
forma e entendem o casamento como

um contrato jurídico e social no qual a
ideia de paixão nem seria desejável. O
que faria um matrimônio durar não se-
ria o amor permanente, todavia a pro-
ximidade de formação ou de renda, a
capacidade de gerar herdeiros que as-
segurarão o nome da família. O casa-
mento não seria uma escolha de indiví-
duos, mas social. Os arranjos matrimo-
niais de muitos hindus ou religiosos
tradicionais falam de uma espécie de
sociedade harmônica e a harmonia im-
plica coisas muito racionais, evitando
o fogo da paixão. Jovens apaixonados

provocam o caos, como Romeu e Julieta
de Shakespeare ou o casal de Amor de
Perdição de Camilo Castello Branco. A
lição das duas obras é uma advertência
contra a insanidade da paixão e o custo
insuportável dela. Que ambas sejam
lidas como casos de amor belíssimos
demonstra que o pathos cantado pe-
los trovadores da Provença é vitorioso
em grau máximo.
Desconfio muito do amor inflama-
do, do amor que não existe sem a outra
parte, de pessoas casadas com uma es-
sência sem elaborar a existência. Con-
fio na relação amorosa que desafia, que
aumenta minha consciência, que esti-
mula que eu consiga mais do meu po-
tencial e explore mais o mundo. Gosto
do amor-desafio que fala de um Nós
que não suprime o Eu e o Tu, que cres-
ça junto e instigue a ser cada vez mais e
que, por força da convivência e das con-
versas mútuas, mostre meus pontos ce-
gos. A convivência íntima do amor, o
contato de corpos, o cotidiano que der-
ruba cenografias e formalidades: tudo
pode ser uma ferramenta extraordiná-
ria de conhecimento de si e do mundo.
Minha ideia de amor não é melhor
ou pior do que qualquer outra. Amor é
exercício e vontade de ultrapassar nos-
sa infantilidade estrutural. Não há da-
mas encantadas no lago, não há cavalei-
ros de armadura reluzente, nunca hou-
ve uma alma gêmea, jamais um amor

redimiu alguém. Quem trabalha
com a estética amorosa idealizada
corre o risco de Dante: nunca convi-
veu com Beatriz, nunca se beijaram,
jamais compartilharam nada além
de um olhar idealizado junto ao Rio
Arno e, como consequência natural
da fantasia amorosa, só puderam
trocar frases no Paraíso, quando
Beatriz já não era um corpo. Aliás,
tomando o final do centésimo can-
to da Divina Comédia , nem isso sabe-
remos se foi um sonho ou real. Esse
é o amor analgésico das dores do
mundo. Que Dante tenha exaltado
aquela com quem ele jamais esteve
a sós e tenha evitado cantar a virtu-
de e a beleza da esposa que o acom-
panhou a vida inteira é um dos mui-
tos defeitos da idealização amoro-
sa. As miragens são compreensí-
veis sob o calor do Saara e muito
perniciosas mesmo lá. O amor real
é uma disposição interna que vive
na prática diária. O outro é fácil:
basta ser o Romeu que encontra Ju-
lieta no domingo e morrem em me-
nos de cinco dias. Amar por uma
semana é onanismo a dois. Amar
por anos é para quem está disposto
a muito mais do que um ajuste cor-
poral. E se Romeu e Julieta comple-
tassem bodas de prata? Boa sema-
na para todos os casais que se
amam há mais de uma semana.

Ludwig von Beethoven. As comemorações dos 250 anos de nascimento do compositor foram interrompidas no mundo pelo surto de coronavírus


LEON KUEGELER/REUTERS

BEETHOVEN


Críticos do ‘New York Times’ elegem as melhores apresentações


A lição de ‘Romeu e Julieta’ é
uma advertência contra a
insanidade da paixão

Você ama?


EM 9 VERSÕES GENIAIS


i
Free download pdf