34 |Valor|Quintaesexta-feira,9e10deabrilde2020
Depois da
peste
S
e não fosseo coronavírus, eu
lançariaum romanceno
próximomês de maio. Como
todosnós, cadaum à sua
maneira,fui pegade surpresa,tive
que adiaros planose relativizaros
problemas.A vida,de repente,foi
suspensa.Para muitos,isso significaa
perdado emprego, a falta de
dinheiropara comprarcomidaou
pagar o aluguel.Sem falar nos que
estãomorrendosozinhosno
hospital, sem poderemse despedir
da famíliae dos amigos.
No meiodo pânicoque se instaurou,
me pus a questionar: que sentido terão
os livros,os filmes, qualquer obra de
arte produzida poucoantes da
epidemia e levada ao públicoquando
a vida voltar ao normal? Ou ainda: fará
algumsentido? Por ora, só pensamos
no coronavírus, só falamos do
coronavírus. O medo, esse maldito,
tomaconta de nossoscorpos, nossas
casas, resumindoa existênciaa um
instinto primitivo, o da sobrevivência.
Só queremos passar por isso e
continuar vivos. Mesmoque o mundo
acabe,e ele está acabando, queremos
ser testemunhas do seu fim e
sobreviver a ele.
Fico tentando imaginarse, no
pós-apocalipse, vamosrapidamente
esquecer o que aconteceu e voltar para
o pontoem que nos encontrávamos
antes, ou se nunca maisseremos os
mesmos. Ainda vamos quererfalar
sobreo vírus?Repensar os modos de
vida, a economia, a importância de um
Estadode confiança, ou, finda a
guerra, retomaremos nossa vida onde
ela estava?
Noromance“A Peste”(Record,trad.
ValerieRumjanek),deAlbertCamus,
quandoseaproximaofimda
epidemiaquetomoucontadeOrã,na
Argélia,ospersonagensTarroue
Cottardsequestionamsobreoque
aconteceráemseguida.“Oquechama
deretornoaumavidanormal?”,
questionaCottard.“Novosfilmesno
cinema”,respondeTarrou,comironia.
MasCottardbuscaumaexplicação
subjetiva;elequersabersepodia
pensarqueapestenãomudarianada
nacidadeequeavidarecomeçaria
comosenadativesseacontecido.
Então,Tarrourevelaacreditarque“a
pestemudariaenãomudariaa
cidade;que,naverdade,omaisforte
desejodosnossosconcidadãoserae
seriaagircomosenadativesse
mudadoeque,portanto,nada,em
certosentido,seriamudado,masque,
emoutrosentido,nãosepode
esquecertudo,mesmocomtodaa
forçadevontade,eapestedeixaria
vestígios,pelomenosnoscorações.”
Soucéticaemrelaçãoauma
mudançadrásticanosistema
capitalistalogodepoisdapeste.Acho
queasbolsaseopetróleovãovoltara
subir,omercadovaiesquecerqueo
mundoestáacabandoedeixardese
importarcomele.Alémdisso,
coletivamente,osbrasileirostêm,de
fato,umafortetendênciaao
esquecimento.Esquecemosa
escravidão,mesmosuas
consequênciassendovisíveise
estruturaisatéhoje.Esquecemosa
ditaduramilitar,ocorridahápoucas
décadas,quetorturouematou
milharesdepessoas.Maspossoestar
enganada—oxaláesteja—ed eixoas
previsõesparaquementendedo
assunto.Comoescritora,soufeito
Cottard,interessam-measrespostas
maissubjetivas,aspequenas
mudanças,osvestígiosnocoração.
Ficomeperguntandooque
acontecerácomashistóriasdeamor
queestavamcomeçandoouestavam
prestesacomeçareforam
abruptamenteinterrompidaspelo
isolamentoexigidopelovírus.Oque
acontecerácomaspessoasque
tiveramquelargarumprojetode
trabalhonomeio?Quemudanças
ocorrerãonasubjetividadedequem
nãopuderestaraoladodospais
quandoelespartirem,nemcumprir
osrituaisdedespedidaquetornama
mortemaispalpávelesuportável?E
nasubjetividadedosnossosvelhos
que,derepente,tiveramquese
trancaremcasa,privadosdosfilhos,
dosnetos,dacaminhadamatinal?
Essasperguntasestãolá,no
romancedeCamus,que,juntocom
“EnsaiosobreaCegueira”, de
Saramago,temsidolidoerelidonos
diasquecorrem.Em1947,anodesua
publicação,foiinterpretadocomo
metáforadoshorroresdaSegunda
Guerra.Hoje,sónosfazpensarno
coronavírus.Ahumanidadejá
viveumuitasepidemias,jáseviu
obrigadaasefecharmuitasvezesem
casa,mas,talvezpeloavançoda
ciência,oupelotalesquecimento
coletivo,nenhumdenósimaginava
terquepararavidaaessepontoe
sabe-seláporquantotempo.
Noromance,acidadeargelinade
Orãétomadapelapestebubônica,
poucodepoisdeomédicoRieux
tropeçarnumratomorto,oprimeiro
sinaldatragédiaquesealastrapela
cidade.Edeumacidadequese
apresenta,desdeoinício,comoum
péssimolugarparaosdoentes:“Em
Orã,osexcessosdoclima,a
importânciadosnegócios,a
insignificânciadocenário,arapidez
docrepúsculoeaqualidadedos
prazeres,tudoexigeboasaúde.Láo
doenteficamuitosó.” Masélámesmo
queapestevaiexigirquetodosse
tranquem,seafastem,seseparem.A
cidadesefecha,ninguémmaisentra;
ninguémmaissai,sejacidadãoou
estrangeiro.
Amortedoporteiro,noinícioda
narrativa,éomarcoentreofimde
umperíodocheiodesinais
desconcertanteseoiníciodeum
outro,emqueasurpresase
transformaempânico.Masaindahá
pessoasquecontinuamaagircomo
Quesentidoterãoos
livros,osfilmes, qualquer
obra dearte produzida
poucoantesdaepidemia
e levadaaopúblico
quandoa vidavoltarao
normal? PorTa t i a n a
SalemLevy
TatianaSalemLevy, escritora e pesquisa-
dora daUniversidadeNova deLisboa,es-
creveneste espaçoquinzenalmente
E-mail:[email protected]
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