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A8 SÁBADO, 11 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Internacional
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
Janaina Cesar
ESPECIAL PARA O ESTADO / VENEZA
A Itália é um dos países mais
afetados pela pandemia de co-
ronavírus. Ontem, o governo
italiano registrava quase 150
mil infectados e 19 mil mor-
tos. Mas, dentro da tragédia,
há um trauma ainda mais di-
fícil de ignorar: 300 mil ido-
sos espalhados em 7 mil asi-
los, a maioria abandonados
pelas autoridades. Desde que
as contaminações começa-
ram, é quase impossível fazer
as contas de quantos morre-
ram nesses refúgios.
Segundo o Ministério da Saú-
de da Itália, a idade média dos
infectados no país é de 78 anos.
Cerca 95% das mortes até o mo-
mento são de pessoas com mais
de 60 anos. A idade média dos
idosos que vivem em casas de
repouso é de 85 anos e 60% de-
les, segundo dados do Instituto
Superior de Saúde (ISS), têm
doenças preexistentes. Ou seja,
desde o início, os asilos italia-
nos eram uma bomba-relógio
pronta para explodir.
A lista de vítimas e doentes
de covid-19 nos abrigos para ido-
sos cresce todos os dias e não
livra a cara de nenhuma região
da Itália. Na Fundação Santa
Chiara, em Lodi, morreram 38
idosos. No asilo Borromea, em
Mediglia, 52. No Centro de Ido-
sos, em Monselice, foram 8. Na
casa San Giuseppe, em Gruglias-
co, perto de Turim, outros 30.
Em Ivrea, também perto de
Turim, o Ministério Público
abriu um inquérito para investi-
gar as mortes em duas casas de
repouso nas pequenas cidades
de Marcorengo, onde morram
12, e em Bosconero, que regis-
trou 4 mortes. Dos 12, apenas
um era positivo para covid-19.
Mas esse não é o único caso
denunciado. Em Milão, o asilo
Pio Alberto Trivulzio (PAT), fa-
moso por ter sido alvo da Opera-
ção Mãos Limpas, voltou a ser
protagonista de um escândalo
nacional. O local está sendo in-
vestigado por Gherardo Colom-
bo, o mesmo procurador res-
ponsável pela cruzada anticor-
rupção dos anos 90. O centro é
acusado de omissão criminosa
diante da morte de dezenas de
idosos por coronavírus.
A lista de despautérios é lon-
ga. Em Soleto, na Província de
Lecce, 80 idosos do asilo La
Fontanella ficaram dois dias
sem comer e sem receber trata-
mento médico, porque todo o
pessoal da estrutura havia en-
trado em quarentena. Como re-
sultado, 5 idosos morreram e
55 estão infectados. Os paren-
tes denunciaram o abrigo e o
Ministério Público está investi-
gando.
A Justiça também investiga a
casa de repouso Domus Aurea,
em Chiaravalle Centrale, na Ca-
lábria, onde morreram sete ido-
sos por coronavírus em apenas
24 horas. A situação é tão grave
que, no dia 24 de março, o ISS
publicou um relatório em con-
junto com o Comitê Técnico
Científico, com informações de
236 asilos. No documento, foi
constatado que 1.845 pessoas
haviam morrido nesses abri-
gos, mas apenas 57 mortes ha-
viam sido catalogadas por coro-
navírus e outras 666 haviam sin-
tomas semelhantes aos de gri-
pe. “Os abrigos são uma área
cinzenta, onde a intervenção é
complicada. Existem disparida-
des de todos os tipos”, disse Ro-
berto Bernabei, geriatra do Co-
mitê Técnico Científico.
Muitas vezes, a insensatez
veio de políticos como o gover-
nador da Lombardia, Attilio
Fontana, que emitiu uma reso-
lução, no dia 8 de março, solici-
tando que os abrigos de idosos
da região recebessem pacientes
com coronavírus.
“Pedir para recebermos pa-
cientes com os sintomas de co-
vid-19 foi como jogar gasolina
na fogueira. Relemos a decisão
do conselho regional duas ve-
zes, e não queríamos acreditar
que um pedido tão louco pudes-
se chegar da Lombardia”, disse
ao Estado Luca Degani, presi-
dente da Uneba, associação co-
mercial que reúne cerca de 400
casas de repouso lombardas.
“No fim, a resolução não foi apli-
cada, pelo menos nas nossas es-
truturas. Mas só o fato de o go-
verno ter pensado em algo do
gênero, significa que os asilos
foi abandonados.”
Um dos países mais afetados pela pandemia tem 300 mil pessoas espalhadas por 7 mil casas de refúgio; algumas ficaram sem
funcionários após a quarentena, outras foram obrigadas a receber infectados no início do surto e muitas são investigadas por negligência
VENEZA
Em meio a revolta dos parentes
de idosos que morreram em asi-
los na Itália, uma queixa é assus-
tadoramente comum: a falta de
transparência da direção das ca-
sas de repouso. “Criaram regras
para prevenir o vírus, mas esque-
ceram os idosos nos asilos. Dian-
te dessa epidemia, deveriam ter
tido a mesma atenção que foi da-
da aos hospitais”, disse Annun-
ziata Castore, cuja mãe de 79
anos, vítima de uma doença rara
que paralisa o corpo, está no asi-
lo San Giuseppe, em Gruglias-
co, desde agosto.
“A direção omitiu coisas no
começo da pandemia, como o fa-
to de que um dos dependentes
estava infectado”, disse Annun-
ziata ao Estado. Ela está revolta-
da. Após os primeiros casos posi-
tivos em centros de atendimen-
to, parentes foram proibidos de
visitar os idosos. Após um mês
sem ver a mãe, Annunziata foi
visitá-la no dia 21 de março. Fo-
ram menos de 10 minutos den-
tro do asilo, mas o suficiente pa-
ra ligar o sinal de alerta para a
situação dentro do lugar.
“Foi uma cena de filme de ter-
ror. Às 15h30, quando entrei, me
deparei com a médica responsá-
vel pelo asilo e a sua preocupa-
ção era ver se eu usava máscara e
luvas. Mas minha temperatura
não foi medida. Ao chegar no an-
dar onde minha mãe estava, per-
cebi o tamanho do problema”,
contou. “Quando saí do eleva-
dor, dei de cara com um cadáver
coberto com um lençol branco.
Minha mãe era única que conti-
nuava a andar com sua cadeira
de rodas pelos corredores. Achei
estranho e perguntei onde esta-
vam os outros e me disseram
que estavam todos doentes.”
Segundo Annunziata, a médi-
ca resolveu desabafar, tirando o
peso da tragédia dos ombros.
Faltava material de proteção e
os profissionais vinham usando
as mesmas luvas e máscara há
uma semana. “Foi quando perce-
bi que aquelas luvas usadas para
manusear o corpo no corredor
seriam usadas para tocar o cor-
po da minha mãe, para tirá-la da
cadeira de rodas e colocá-la na
cama. Entrei em pânico”, disse a
italiana, que ligou para a polícia
e denunciou o caso. Naquela se-
mana, seis pessoas morreram
no asilo.
Em seguida, Annunziata e pa-
rentes de outros pacientes não
puderam mais entrar no asilo.
Por telefone, recebiam a infor-
mação de que estava tudo bem.
Mas não estava. Um dia, o vizi-
nho do asilo ligou para denun-
ciar que vários caixões estavam
saindo de lá, foi quando desco-
briram que 21 idosos haviam
morrido sem que ninguém avi-
sasse nada.
Os parentes, desesperados, fo-
ram ao asilo para saber quem ha-
via morrido. “Algumas pessoas
chegaram e se depararam com o
caixão lacrado, não puderam
nem mesmo ver o semblante da
mãe que a doença havia levado.”
Um grupo de 20 parentes fez
um boletim de ocorrência. Ago-
ra, a mãe de Annunziata está
muito doente. “Ela está em isola-
mento. Sei que fizeram o teste
para e o resultado deve chegar
em poucos dias. Mas, desde o dia
2, ela precisa de oxigênio para
respirar. Não posso levá-la para
casa. Existe a possibilidade de le-
vá-la para uma UTI, mas os hos-
pitais estão lotados. Que alterna-
tivas eu tenho?”, questiona.
A situação é dramática não só
para os parentes de idosos, mas
também para os profissionais
de saúde que trabalham nos asi-
los. Segundo a União Europeia
das Cooperativas, “a situação é
grave e nos obriga a trabalhar
em condições extremas em ra-
zão da falta de máscaras e rou-
pas de proteção. Na guerra con-
tra o coronavírus, é essencial
que os profissionais estejam
equipados”. / J.C.
Surto provoca morte em massa de
idosos abandonados em asilos na Itália
lResolução
lPânico
lOs profissionais de saúde da
Itália estão sendo afetados pelo
abandono dos asilos. Foi o que
aconteceu na casa de repouso La
Madonnina, em Bassano del Grap-
pa, no Vêneto. O asilo tem um
centena de hóspedes e 70 profis-
sionais de saúde, dos quais 24
estão infectados. Entre os idosos,
5 estão doentes e 2 morreram.
“Trabalho lá há pouco tempo.
Havia rumores de pessoas infec-
tadas. Mas, quando assumi o pos-
to, esqueceram de me avisar so-
bre este pequeno detalhe”, disse
uma profissional de saúde, que
preferiu não ter a identidade reve-
lada. Ela afirma que toda a estru-
tura foi colocada em quarentena
por 48 horas, mas ninguém sabe
de onde partiu a ordem. “Primei-
ro, nos disseram que era decisão
da agência sanitária. Depois, que
tinha sido do diretor do asilo.”
Após os primeiros casos, o asi-
lo criou uma ala destinada ao iso-
lamento, mas isso só ocorreu
porque de um grupo de 27 pes-
soas, 20 estavam com febre. Se-
gundo a profissional, as vítimas
que morrem no asilo são levadas
para o hospital apenas em casos
extremos. “Continuamos a seguir
a orientação de deixar a UTI pa-
ra os mais jovens”, disse.
Segundo ela, os testes deve-
riam ser realizados a cada 48
horas, “mas faz uma semana que
não são feitos”. Os turnos massa-
crantes podem chegar a 14 ho-
ras, porque falta pessoal. “Mui-
tos estão doentes”, afirmou. “Fal-
ta equipamento de proteção. As
máscaras são improvisadas, as
camisas descartáveis não nos
protegem e, mesmo assim, limpa-
mos os corpo dos idosos que
morreram infectados.” / J.C.
MANUEL SILVESTRI / REUTERS
“Pedir para recebermos
pacientes com os sintomas
de covid-19 foi como jogar
gasolina na fogueira.
Relemos a decisão do
conselho regional duas
vezes, e não queríamos
acreditar que um pedido
tão louco pudesse chegar da
Lombardia. No fim, a
resolução não foi aplicada,
pelo menos nas nossas
estruturas. Mas só o fato de
o governo ter pensado em
algo do gênero, significa que
os asilos foi abandonados”
Luca Degani
PRESIDENTE DA UNEBA
Vítimas. Idoso caminha por Veneza dias após o decreto de quarentena: cerca 95% das mortes até o momento na Itália são de pessoas com mais de 60 anos
CLAUDIO FURLAN/ AP
“Criaram regras para preve-
nir o vírus, mas esquece-
ram os idosos nos asilos.
Diante dessa epidemia, de-
veriam ter tido a mesma
atenção que foi dada aos
hospitais”
Annunziata Castore
FILHA CUJA MÃE ESTÁ DOENTE NO
ASILO SAN GIUSEPPE
Milão. Asilo Pio Albergo Trivulzio é acusado de omissão
No asilo em que a mãe
está, Annunziata diz que
funcionários usam a
mesma luva para tocar
os pacientes e os mortos
Famílias criticam desleixo e falta
de informação de casas de repouso
Profissionais de
saúde se tornam
vítimas do descaso