REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
mas que há de ser, se somos terra. Compramos o vício
à custa de trabalhos e aflições; a virtude não a
queremos de graça; ao vício estimamos, porque
depende de objetos exteriores, e êste muitas vêzes
custosos, incertos e arriscados; desprezamos a virtude,
porque só depende de nós; bons podemos ser sempre,
porque basta que o queiramos ser; para sermos maus
necessitamos de ocasião. Quantos danos traz consigo a
felicidade! Os três votos, que se julgam tão pesados
quando se professam, são os mesmos com que todos
vêm ao mundo; todos nascem pobres, castos e
obedientes: a pobreza e a obediência quem as conserva
é por fôrça; e castidade só por vontade se pode
conservar; e com efeito quem há de segurar um voto,
que se quebra só com o desejo? A castidade do corpo
dificultosamente se guarda, a da alma, ainda com mais
dificuldade, não sei em qual das duas consiste a
castidade verdadeira ; se consiste na do corpo, essa é
material, e está sujeita a mil enfermidades, e acidentes,
e talvez pode perder-se sem consentimento de quem a
perde, seria injusto, que uma qualidade tão bela, e em
que se funda a virtude mais superior, ficasse
dependente da fôrço, do tempo, da opinião, e também
de algum sucesso involuntário é pois na alma o donde
consiste a castidade mais perfeita e verdadeira: mas
sendo assim, donde se há de achar a castidade? pois
para corromper-se, basta um instante de vontade, de
inclinação, de pensamento, de amor.
Na república das letras não há menos vaidade (120 que
na república das armas; sim é uma vaidade metafísica,
espiritual, e que na sua origem tem