REFLEXÕES SOBRE A VAIDADE DOS HOMENS
quio: nas ofensas consideramos mais o atrevimento da
injúria, que o prejuízo do mal; por isso se sente menos
a dor das feridas, do que o arrojo do impulso ; e assim
na vaidade nunca se forma cicatrizes firmes, e seguras;
porque a lembrança do agravo a cada instante as faz
abrir de nôvo, e verter sangue.
O corpo não é sensível igualmente em tôdas as (35) suas
partes: umas sofrem, e resistem mais; qualquer desconsêrto
em outras é mortal: assim também no corpo da vaidade há
partes, em que penetra mais o sentimento: daqui vêm
inimizades, que nem a morte reconcilia, ódios que duram tanto
como a vida. Tudo o que nos tira, ou diminui a estimação, nos
serve de tormento; porque o respeito é o ídolo comum da
vaidade; aquilo que o ofende, não se perdoa fàcilmente, e fica
sendo como um sacrilégio irremissível, e como um princípio
de donde se originam tantas aversões hereditárias.
Acabando tudo com a morte, só a desonra não (36) acaba;
porque o labéu ainda vive mais do que quem o padece: por
mais insensível que esteja um cadáver na sepultura (permita-
se a hipérbole) lá parece que a lembrança de uma infância,
que existe na memória dos que ficam, lhe será animando as
cinzas, para o fazer capaz de aflição, e sentimento: terrível
qualidade, cujos efeitos, ou cujo mal, não se acaba, ainda
depois que acaba quem o tem; sendo a única desgraça, que se
imprime na alma, como um caráter