REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
vaidade alguma despreza a reputação, e por con-
sequência a honra; esta constitui uma religião humana,
que se não pode desprezar sem crime; por isso o
homem de iniquidade é a quem desamparou não só a
virtude da razão, mas também o vício da vaidade.
Daqui vem que é útil o ter alguma tintura de vaidade, a
substância, não; não há de ser o corpo, mas a
superfície.
Nos contratos tem pouca parte a boa-fé; as (76)
obrigações não bastam, e as cláusulas, por mais que sejam
fortes, tôdas se controvertem, e pervertem: as condições, por
mais que sejam claras, esquecem-se; nunca faltam pretexto
para duvidar, nem meios para se fazer questão daquilo, em que
a não pode haver. Da falta da boa-fé nasce a dúvida, da dúvida
nasce o argumento, do argumento a desunião, e desta a
dissolução do contrato, ou a ação para o desfazer. No princípio
das nossas convenções ninguém adverte por onde possa nelas
entrar a controvérsia, depois de celebradas em cada ponto se
acham mil motivos de disputa; uma vírgula de menos, ou de
mais, é bastante fundamento para uma larga discussão.
Quando se não pode negar o ajuste nega-se-lhe o sentido; e
êste quando se não pode mudar, interpreta-se e vem a ser o
mesmo: o que não tem interesse em cumprir o ajuste é, o que
descobre nêle as implicâncias, e defeitos, que os outros lhe
não vêem: não há coisa mais sutil do que a malícia; a
sinceridade é simples, grosseira e inocente: o engano todo se
compõe de arte; e por isso a perspicácia nos homens é
qualidade suspeitosa, e que tem menos valor, que o que
comumente se lhe dá; porque se não é sinal um ânimo
dobrado, e infiel, ao