MATIAS AIRES RAMOS DA SILVA DE EÇA
da constituição do nosso corpo, que da estabilidade da
nossa vontade; o estado do nosso ânimo depende da
nossa disposição, por isso a inconstância é natural,
porque logo que nascemos, entramos em um estado
contínuo de mudar. O tempo não conta a nossa idade
pelos anos, mas sim pelos instantes, e cada instante de
mais também é demais em nós uma mudança.
Caminhamos com pressa, e com gôsto para o fim:
semelhantes aos rios, que apressadamente correm para
o mar, donde perdem a doçura, e a acabam. Não há
imagem mais própria da vaidade humana, do que êsses
mesmos rios; todos têm o nascimento em um profundo
lago; nem todos trazem do monte Olimpo a origem;
nem todos correm por entre flôres, por entre plátanos, e
cedros; nem todos trazem ouro nas areias, porque nem
todos vêm de onde vem o Tejo; uns assim que nascem,
logo formam um dilúvio de água, inundam a cam-
panha, e com violência e pêso, tudo abatem, forçam,
levam; o leito que os sustenta, em parte se abre, se
rompe e se desfaz. Outros rios mais pequenos no
princípio, depois se fazem caudalosos, no caminho
engrossam com emprestadas águas, que recebem: uns
correm por cima de esmeralda, outros não têm no
fundo mais do que humildes conchas, pardos seixos,
verdes limos; uns nascem entre cristais claros, outro
entre rocha escura; uns passam escumando, e com
estrondo, outros só murmuram; uns acham campo
largo, em que as águas se dilatam, e em que o sol vê,
outros correm presos e oprimidos por entre serras
agrestes e sombrias; uns têm alto o nascimento, porque
êste é no cume de altos montes, por isso ainda quando
descem passam com estrépito e furor; outros têm o
mesmo nascimento baixo, porque êste é na parte mais
remota de um vale inferior,