Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1
Mas não é só isso. Podemos distinguir a ideia moderna de dever e a conveniên­
cia estoica a partir do que nos diz Victor Goldschmidt. Este helenista explica que
a conveniência pode ser pensada à luz da teoria da interpretação ou divinatio. As­
sim como esta visa eliminar a distância entre dois tempos, formulando a coesão
dos acontecimentos num presente alargado, assim também o conveniente é o que
abole a distância entre dois termos, um deles signo do outro. Assim sendo, se
desfaz a aparência de que o conveniente é um imperativo (um dever ou uma ordem
moral), pois o sábio o reconhece como indicativo de um acordo.

Não há, inicialmente, dois termos distantes e distintos dos quais um (a natureza)
forneceria a referência à qual o outro (tal coisa, tal ato) deveria ser remetido. No
ponto de partida há apenas a natureza do agente, termo único em acordo consigo
mesmo. Assim como o universo é um sistema unificado, assim também o indivíduo
é um conjunto organizado (systasis,* constitutio*). O segundo termo aparece somen­
te como redobro do primeiro: é o ato, contemporâneo ao seu ser, pelo qual o indiví­
duo se percebe (Goldscmidt, 1953, p. 127).


  1. As paixões
    Assim como transformaram a ideia do destino, os estoicos também transfor­
    maram a da paixão. Na tradição trágica, a paixão era uma perturbação que os
    deuses imprimiam no coração humano, uma espécie de possessão do homem por
    uma força que o ultrapassa e da qual ele é uma vítima. A paixão manifesta a fragi­
    lidade humana perante forças transcendentes às quais ninguém pode se opor.
    Para os estoicos, é irrazão e loucura nascidas de nosso assentimento a falsas repre­
    sentações. É adesão ao falso, obra do próprio homem e não dos deuses.
    A paixão (páthos) não é uma passividade e sim um movimento irracional da
    alma contrário à sua natureza, uma inclinação desmedida ou veemente, que rom­
    pe o equilíbrio natural. É a intemperança. Zenão a define como agitação da alma,
    oposta à razão e contra-natureza. Crisipo a define como um movimento irracio­
    nal da alma, uma hormé tirânica.
    Na tradição filosófica, vinda de Platão e Aristóteles, a paixão era considerada
    natural e sua causa, o conflito no interior da alma entre sua parte irracional e a
    racional. Para os estoicos, a alma não se divide em racional e irracional, mas é in­
    teiramente razão e a paixão se define como um erro do juízo ou uma opinião
    pervertida -portanto uma representação e um assentimento. A paixão é irracio-

Free download pdf