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H8 Especial QUINTA-FEIRA, 23 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Caderno 2
R
oberto Alvim foi o escolhido
por Bolsonaro & Filhos para
ser ministro da Cultura. Não
teve tempo de mostrar o que faria na
pasta porque não sobreviveu à sua pri-
meira apresentação como ministro,
quando leu um texto inspirado par-
cialmente em Goebbels, o homem da
Cultura do Reich nazista, com músi-
ca de fundo de Richard Wagner, o
compositor favorito de Hitler. A reação
foi grande e Alvim caiu no dia seguinte,
para ser substituído dias depois pela Re-
gina Duarte, que, supostamente, nunca
leu Goebbels e prefere Wagner Tiso. Co-
mo tudo se resolveu rapidamente, não
deu para meditar sobre a nomeação de
Alvim e sua passagem fulminante pelo
ministério, e principalmente seu signifi-
cado como prenúncio do que viria a ser
uma característica do governo que se
iniciava, o surrealismo.
O mesmo governo que quase entre-
gou a gerência da cultura brasileira ao
filofascismo escolheu para ministro
da Educação alguém sem nenhuma in-
timidade com a ortografia – um exem-
plo, entre muitos, do surrealismo que
nos dominaria. A incrível guerra de
egos que acabou com a troca do minis-
tro da Saúde quando a situação mais
precisava de união e continuidade ul-
trapassou o surrealismo e invadiu a
área da demência. O presidente discur-
sou numa manifestação que pedia a
volta do AI-5 e, portanto, a queda do
seu próprio governo, ou sua transfor-
mação numa paródia de governo com
ele na frente, e discursou a favor do
autogolpe. Ele já declarara, para outra
das aglomerações que o seguem por
toda a parte, espalhando coronavírus:
“A constituição sou eu”. Louis XIV ti-
nha dito que o Estado era ele, Bolsona-
ro foi mais modesto. Um dos recursos
do surrealismo é o da alteração da
natureza das coisas. Relógios se der-
retendo como picolés, etc. No sur-
realismo brasileiro, não surpreende
que documentos se transformem
em gente e gente se transforme em
antigos reis da França.
Existe coisa mais surrealista do
que o Palácio do Planalto, de onde
um ex-capitão cercado por generais
de fatiota comanda o País, desdizen-
do-se cada vez que um pronuncia-
mento “pega mal”? Roberto Alvim as-
sumindo a Cultura ao som de Richard
Wagner até que tinha a sua lógica.
Verissimo
Ubiratan Brasil
A escritora americana Jacqueli-
ne Woodson já havia publica-
do mais de 30 livros para jo-
vens leitores e ganhado vários
prêmios (com destaque para
Memorial Astrid Lindgren, de
2018) quando mudou o rumo
para uma escrita mais adulta.
Primeiro com o impactante
Um Outro Brooklyn , lançado
em 2016 e que agora chega ao
Brasil, pela editora Todavia.
Depois, com Red at the Bone ,
que também ganhará uma edi-
ção em português, em 2021.
Independentemente da fai-
xa etária de seu leitor-alvo, Jac-
queline mantém uma coerên-
cia, pois todos seus livros colo-
cam crianças e adolescentes
negros no centro da trama –
sem condescendência, mas po-
sicionados em situações realis-
tas e com uma profunda com-
preensão da psique de seus per-
sonagens. Outra constante é o
fascínio pelo Brooklyn, bairro
de Nova York onde ela foi mo-
rar nos anos 1970. Ela cresceu
em Bushwick, região que, na
época, era ocupada principal-
mente por negros e latinos.
O passar do tempo, porém,
foi dolorido. “O quarteirão em
que cresci agora é predominan-
temente branco”, afirma ela
que, não à toa, na dedicatória de
Um Outro Brooklyn anotou: “Pa-
ra Bushwick (1970-90). Em Me-
mória”. Discreto lamento pela
descaracterização da região, va-
lorizada pela chegada de gran-
des investimentos que “esbran-
quiçaram” o bairro, a ponto de
Jacqueline ter dificuldade em
alugar um apartamento nos
anos 1990 – os proprietários evi-
tavam fazer negócios com estra-
nhos, mães solteiras e negros.
Essa “invisibilidade social” es-
tá presente em seus romances,
que Jacqueline utiliza como
uma forma de busca por si mes-
ma. No livro agora editado no
Brasil, Augusta é uma antropó-
loga que volta para casa para o
enterro do pai – sua pesquisa
acadêmica foca justamente ri-
tuais funerários de várias cultu-
ras, uma forma de desvendar o
mistério do luto e a dor da per-
da. Ao reencontrar Sylvia, ami-
ga de longa data, Augusta volta
aos anos 1970, quando chegou
ainda menina ao Brooklyn, um
lugar onde garotas como ela po-
diam sonhar com um futuro
acolhedor. Sobre o livro, Jacque-
line, que também é ilustradora,
respondeu por e-mail às seguin-
tes questões.
lNossas vidas agora dependem
de ficar em casa e não fazer na-
da. A quarentena está sendo pro-
dutiva em relação ao seu traba-
lho como escritora?
Enquanto escrevo (início de
abril) , entramos na quarta sema-
na de quarentena. Como tudo
está no ar de muitas maneiras, é
difícil me concentrar no traba-
lho criativo. Minha companhei-
ra é médica em Nova York, nos
mudamos para o campo para fu-
gir das multidões e de todos os
muitos lembretes da pandemia
- embora não haja realmente ne-
nhuma maneira de escapar dela
aqui. Meus filhos estão aqui co-
migo. Em “tempos normais”, es-
crevo quando ela sai para o tra-
balho e as crianças vão para a es-
cola. Mas esses não são tempos
normais. Escrevo algumas fra-
ses e continuo tentando pensar
em vários projetos ao mesmo
tempo. Não me sinto muito pro-
dutiva, mas a escrita me faz con-
tinuar a viver e pensar.
lVocê é um daqueles escritores
raros que escreve para todas as
faixas etárias. Como e quando
você decide para qual faixa etária
está escrevendo?
Os livros me escolhem. Eu
nunca decidi escrever para um
público em particular e, às ve-
zes, nem faço ideia de qual se-
rá o público-alvo até o proces-
so de escrita avançar bastante.
Os livros ilustrados parecem
mais como poemas para mim.
A ficção adulta permite que o
leitor me encontre no meio do
caminho com suas próprias ex-
periências e a literatura juvenil
me permite pensar e brincar.
Normalmente, estou traba-
lhando em mais de um gênero
a cada vez.
lQuão biográfico é Um Outro
Brooklyn? Qual o papel da expe-
riência pessoal em termos de
inspiração?
Sempre digo que meus livros
são mais psicologicamente au-
tobiográficos do que pelos fa-
tos em si. Toda emoção que
meus personagens sentem é a
mesma que senti em algum mo-
mento. Muito do meu passado
ressoa comigo – tanto os mo-
mentos bons como os ruins. En-
tão, é isso que trago para a nar-
rativa. Obviamente, existem
elementos que estão diretamen-
te fora da experiência física –
Nação do Islã (grupo político e
religioso surgido nos EUA nos
anos 1930 e que pregava a cons-
cientização da população afro-
americana) , Bushwick, ter boas
amigas. Mas a maioria das expe-
riências em Um Outro Brooklyn
é imaginada e /ou inspirada pe-
lo mundo que me rodeia.
lPor que o romance se chama
Um Outro Brooklyn? Quero dizer,
existe um primeiro?
Inspirado por Terra Estranha ,
de James Baldwin, e Brooklyn ,
de Colm Toíbín, o romance se
propõe a contar uma história
diferente sobre um lugar que
as pessoas sentem que conhe-
cem. Também representa a
percepção de pessoas que dese-
jam encontrar uma saída.
lNo início, Augusta diz: “Agora
sei que trágico não é o momento.
É a memória”. Existe uma trama
para a tragédia que não está com-
pleta até que a tragédia seja repe-
tida na memória e entendida co-
mo uma?
Boa pergunta. Não sei se pos-
so falar definitivamente sobre
como a memória e a experiên-
cia funcionam juntas para to-
dos. Para mim, como escrito-
ra, a narrativa é sempre sobre
olhar algo profunda e frequen-
temente, olhar para trás em re-
lação a algo.
lVocê se vê como uma escritora
política ou sente que os escrito-
res são criaturas inevitavelmente
políticas?
Sou uma escritora que é políti-
ca. Eu nem sempre concordo
com os qualificadores aparece-
rem antes da arte.
lQual a importância da perspec-
tiva do narrador? Existe conexão
entre perspectiva e verdade?
Augusta é um narrador não
confiável. Eu acho que isso é
importante para essa história
em particular por causa de tu-
do o que acontece nela. Não
posso falar por todos os narra-
dores de todas as histórias.
l Red at the Bone contém refe-
rências a diferentes tipos e épo-
cas de música. Como é o uso da
música no livro e a força de cone-
xão que ela representa?
A música tem um papel impor-
tante em todos os meus livros.
Ouço enquanto escrevo e a
música que escuto tende a co-
incidir com o período em que
escrevo. Como o livro abrange
uma extensão de tempo tão
longa, eu queria que a música
fosse representada, então você
tem de tudo, desde jazz e blues
até o hip hop contemporâneo,
entrelaçado na narrativa.
OLHAR CRÍTICO
PARA TEMAS
URGENTES
No livro ‘Um Outro
Brooklyn’, a exclusão
social inspira a história
LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE
ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS
l]
Jacqueline Woodson, escritora americana
Entrevista*
Surrealismo
HILARY SWIFT/NYT
Ilustração. Para Jacqueline, um verão da infância na beleza verdejante de Greenville revelou seu lugar e tempo na história
Jacqueline. Seus livros são
escritos na primeira pessoa
FEMI DAWKINS/NYT
UM OUTRO
BROOKLYN
Aut.: Jacqueli-
ne Woodson
Trad.: Stepha-
nie Borges
Edit.: Todavia
(122 págs., R$
49,90/ R$ 34,50)
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