O Estado de São Paulo (2020-04-23)

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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 23 DE ABRIL DE 2020 Internacional A


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e onde vem esse vírus que
mata cegamente, que pren-
de milhões de pessoas em
casa, que arruína países e produz
uma crise econômica violenta? Co-
mo responder a esta pergunta? O
culpado é um desconhecido. Além
disso, é invisível. Tente apanhar al-
go invisível.
Seu surgimento é um enigma.
Nos primeiros dias, tudo estava cla-
ro: havia aparecido na China, em
Wuhan, em um mercado onde pe-
quenos animais selvagens são ven-
didos, dos quais os chineses gostam
e frequentemente carregam o vírus.

Um vendedor tinha sido infectado.
Alguns dias atrás, um cientista, pro-
fessor Luc Montagnier, vencedor do
Nobel, veio a público. Ele sustentou
que o coronavírus foi desenvolvido
por pesquisadores chineses. Essa reve-
lação não convenceu ninguém. Foi en-
tão imaginado que o caso teria sido
um acidente, hipótese que também é
estudada pelos serviços de inteligên-
cia americanos. O que não ajuda é o
fato de os chineses não terem apresen-
tado a investigação epidemiológica
que fizeram.
Boca fechada e nada de investiga-
ções internacionais em Wuhan. E aqui

está uma nova versão apresentada. A
França acaba envolvida na história,
com pesquisadores e políticos do alto
escalão. Os rumores circulam há al-
guns dias, mas hoje temos duas peças
sólidas: a reportagem da unidade in-
vestigativa da Radio France e a do Le
Figaro , conhecida pela excelência de
sua apuração.
A história começa em 2004. Jacques
Chirac, que tem um grande interesse
por civilizações do Extremo Oriente,
decide se associar ao então presidente
chinês, Hu Jintao, para lutar contra
doenças infecciosas emergentes. O
premiê da época, Jean Pierre Raffarin,
grande conhecedor da China, fez os
contatos. O chanceler, Michel Bar-
nier, está associado às conversações.
É importante lembrar que, na época, a
China tinha acabado de passar por ou-
tro surto, o de Sars, síndrome respira-
tória muito perigosa.
Essas iniciativas foram acompanha-
das na França por algumas pessoas cu-
jas análises diferem. Um funcionário

resume a importância da operação.
Ele explica que é bom ajudar os chine-
ses na luta contra esses flagelos. Ele
conclui com esta frase estranha: “Te-
mos de evitar que os chineses enfren-
tem esses problemas sozinhos”.
Entre os apoiadores do projeto es-
tão Chirac e Raffarin, é claro, médicos
eminentes, além de um conhecido far-
macêutico, Alain Mérieux, que será o
piloto da operação, e um chinês. Mas
há uma objeção: a pesquisa não estaria
sujeita a nenhum controle oficial. A
instalação poderia se tornar um arse-
nal biológico. Então, tem início a ope-
ração, que encontra obstáculos cons-
tantes, dos quais não podemos descre-
ver todas as fases. Apesar de tudo, o
local é concluído e inaugurado em
2018, com uma visita de Emmanuel
Macron.
Os chineses pretendiam manter a
construção do laboratório secreto pa-
ra si mesmos. A França foi se afastan-
do e Mérieux deixou a comissão bilate-
ral. Era esperado que fossem despa-

chados para o local 50 pesquisado-
res, que trabalhariam na instalação.
Nunca os vimos.
Algumas autoridades america-
nas e britânicas fizeram alusões mis-
teriosas ao caso. E o que Macron
disse? “Aconteceram ali coisas das
quais não temos conhecimento.”
Durante três meses, todos afirma-
ram não saber nada a respeito do
episódio.
Na China, obviamente, há pes-
soas que sabem. Nos EUA e no Rei-
no Unido, também. E na França? De-
zenas de políticos, cientistas e pes-
quisadores, entre eles um ganhador
do Nobel, sabiam de alguma coisa,
mas o quê? Talvez nada. Hoje, uma
nova cortina parece se abrir nesse
teatro de sombras e crueldades. E,
em suas paisagens invisíveis, o no-
vo coronavírus continua matando. /
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

]
É CORRESPONDENTE EM PARIS

GILLES


LAPOUGE


EMAIL: [email protected]

Origem sombria do vírus


NOVA YORK


Pelo menos 28 mil pessoas a
mais do que o total apontado
nos relatórios oficiais da con-
tagem de mortos por covid-
19 morreram durante a pan-
demia de coronavírus no últi-
mo mês, segundo uma revi-
são dos dados de mortalida-
de em 11 países – fornecendo
uma imagem mais clara, po-
rém, ainda incompleta, do nú-
mero de vítimas.

No último mês, morreram
muito mais pessoas nesses paí-
ses do que nos anos anteriores,
de acordo com pesquisa do jor-
nal The New York Times. O nú-
mero total de mortos inclui
mortes por covid-19, bem como
por outras causas, provavel-
mente, incluindo pessoas que


não puderam ser tratadas por-
que os hospitais estão lotados.
Esses números enfraquecem
a ideia de que muitas pessoas
que morreram com o vírus mor-
reriam em breve de qualquer
maneira. Em Paris, mais que o
dobro do número habitual de
pessoas morre todos os dias,
muito mais do que o pico de
uma temporada ruim de gripe.
Na cidade de Nova York, o nú-
mero é quatro vezes maior que
a quantidade normal.
Obviamente, os dados de
mortalidade no meio de uma
pandemia não são perfeitos. As
disparidades entre a contagem
oficial de mortes e o aumento
total de óbitos muito provavel-
mente refletem mais o número
limitado de pessoas testadas do
que uma subnotificação inten-

cional. Oficialmente, cerca de
165 mil pessoas morreram por
conta do coronavírus em todo o
mundo até terça-feira. Mas o nú-
mero total de mortes oferece
um retrato mais completo da
pandemia, dizem os especialis-
tas, especialmente porque a
maioria dos países registra ape-
nas as mortes por covid-19 que
ocorrem em hospitais.
“Qualquer número relatado
em um determinado dia será
uma subestimação grosseira”,
disse Tim Riffe, demógrafo do
Instituto Max Planck de Pesqui-
sa Demográfica, da Alemanha.
“Em muitos lugares, a pande-
mia já existe há tempo suficien-
te para que haja o registro tar-
dio de óbitos, dando-nos uma
imagem mais precisa do que
realmente era a mortalidade.”

As diferenças são particular-
mente acentuadas em países
que demoraram a reconhecer a
extensão do problema. Istam-
bul, por exemplo, registrou cer-
ca de 2, 1 mil mortes a mais do
que o esperado entre 9 de mar-
ço e 12 de abril – aproximada-
mente o dobro do número de
mortes por coronavírus relata-
das pelo governo turco para o
país inteiro naquele período. O
aumento de mortes em meados

de março sugere que muitas pes-
soas que morreram foram infec-
tadas em fevereiro, semanas an-
tes de a Turquia reconhecer ofi-
cialmente seu primeiro caso.
Em março, o governo indoné-
sio atribuiu 84 mortes ao coro-
navírus em Jacarta. Mas mais
de mil pessoas acima do núme-
ro habitual foram enterradas
nos cemitérios da cidade naque-
le mês, segundo dados do De-
partamento de Parques e Cemi-
térios da cidade.

Estimativa. Para chegar ao re-
sultado, o New York Times esti-
mou o excesso de mortalidade
de cada país comparando o nú-
mero de pessoas que morreram
devido a todas as causas este
ano com a média histórica du-
rante o mesmo período.

Em muitos países europeus,
dados recentes mostram que
20% a 30% mais pessoas estão
morrendo do que o normal. Is-
so se traduz em dezenas de mi-
lhares de outras mortes.
Os desvios dos padrões nor-
mais de mortes foram confirma-
dos em muitos países euro-
peus, de acordo com dados di-
vulgados pelo Projeto Europeu
de Monitoramento de Mortali-
dade, um grupo de pesquisa que
coleta dados semanais de mor-
talidade de 24 países.
Os dados são limitados e as
mortes em excesso são subesti-
madas porque nem todas foram
relatadas. “Nesta fase, trata-se
de uma fotografia parcial”, dis-
se Patrick Gerland, demógrafo
das Nações Unidas. “É uma vi-
são do problema que reflete o
lado mais agudo da situação,
principalmente por meio do sis-
tema hospitalar.” É provável
que isso mude. “Nos próximos
meses”, disse Gerland, “uma
imagem muito mais clara será
possível.”
“O aumento atual da mortali-
dade por todas as causas ocorre
sob condições extraordinárias,
como distanciamento social,
confinamento, fronteiras fecha-
das e aumento da assistência
médica”, disse Vladimir Shkol-
nikov, demógrafo do Instituto
Max Planck para Pesquisa De-
mográfica. “É provável que,
sem essas medidas, o número
atual de mortes fosse ainda
maior.” / NYT, TRADUÇÃO DE ROMI-
NA CÁCIA

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


BRUXELAS


Líderes autoritários de todo o
mundo vêm usando a pandemia
do coronavírus para consolidar
o seu poder. Na Europa, os go-
vernos de Polônia e Hungria fize-
ram mais. Ambos conseguiram
transformar a crise em um golpe
e punir seus oponentes.
Em um esforço apressado pa-
ra mostrar que estava fazendo
algo durante a crise, a União Eu-
ropeia direcionou ¤ 37 bilhões
(cerca de R$ 216 bilhões) para


ajudar membros mais pobres do
bloco. O resultado é que Hun-
gria e Polônia obtiveram muito
mais dinheiro do que Itália ou
Espanha, países muito mais afe-
tados pelo vírus.
Segundo o instituto Euro-
pean Stability Initiative, a Itália
recebeu ¤ 2,3 bilhões, enquanto
a Hungria, com um sexto da po-
pulação italiana e com menos ca-
sos da doença, recebeu ¤ 5,6 bi-
lhões – 3,9% de seu PIB. A Polô-
nia recebeu ¤ 7,4 bilhões. A aloca-
ção distorcida do dinheiro, com
pouca supervisão ou exigência
de respeitar o estado de direito,
em vez de punir os dois gover-
nos, que sempre desafiaram os
valores democráticos na Euro-
pa, parece uma recompensa.
Na Hungria, o primeiro-minis-
tro, Viktor Orbán, exerce seus

poderes especiais de emergên-
cia concedidos pelo Parlamen-
to, controlado por ele, negando
aos prefeitos da oposição a recei-

ta tributária de empresas – por
decreto, ele direcionou todo o
imposto dessas companhias
que estão em redutos oposito-

res para o governo central.
Já o governo da Polônia, lidera-
do pelo Partido Lei e Justiça
(PiS), planeja seguir com as elei-
ções presidenciais, marcadas pa-
ra 10 de maio, apesar de um blo-
queio que impede os candidatos
de oposição de fazerem campa-
nha. O governo ainda pressiona
o Parlamento para que aprove
um projeto de lei para exigir que
todos os 30 milhões de eleitores
votem por meio de uma cédula
postal, o que o serviço de cor-
reios considera absurdo e impos-
sível.
A iniciativa é criticada pelo
chefe da Comissão Nacional
Eleitoral, o juiz Sylwester Marci-
niak, e por seu antecessor, o juiz
Wojciech Hermelinski. “É con-
tra todas as regras”, disse Her-
melinski à emissora TVN24. “Es-

sas eleições não serão univer-
sais, parciais, anônimas”, afir-
mou.
No entanto, o presidente polo-
nês, Andrzej Duda, apoiado pelo
PiS, não pretende desistir. O lí-
der do partido, Jaroslaw
Kaczynski, disse que adiar a elei-
ção em um ano poderia compro-
meter uma vitória de Duda, pois
a Polônia estaria passando por
uma recessão.
Na sexta-feira, o Parlamento
Europeu aprovou uma resolu-
ção criticando os dois governos
ao dizer que ambos adotam me-
didas “totalmente incompatí-
veis com os valores europeus”.
Até agora, Polônia e Hungria
têm evitado sanções da UE, que
devem ser aprovadas por unani-
midade – poloneses e húngaros
se ajudam, revezando o veto às
punições. Autoridades euro-
peias já tiveram três audiências
com a Polônia e duas com a Hun-
gria, mas não houve acordo. / NYT

11 países tiveram


28 mil mortes a


mais, diz jornal


Hungria e Polônia usam a pandemia contra a oposição


●Houve pelo menos 28 mil mortes a mais por covid-19 do que os registros oficiais indicam


RASTREANDO A PANDEMIA


FONTE: DADOS DE MORTALIDADE ANALISADOS PELO NEW YORK TIMES INFOGRÁFICO/ESTADÃO

Mortes
em 2020

MÉDIA HISTÓRICA

Espanha

JAN DEZ

MORTES ACIMA DA MÉDIA
MORTES REPORTADAS POR COVID-

19.
12.

Suécia

Mortes
em 2020
MÉDIA HISTÓRICA

2 MIL MORTES
POR SEMANA

JAN DEZ

MORTES ACIMA DA MÉDIA
MORTES REPORTADAS POR COVID-

1.
1.

Mortes
em 2020

MÉDIA HISTÓRICA

MORTES ACIMA DA MÉDIA
MORTES REPORTADAS POR COVID-

16.
10.

JAN DEZ

Holanda Inglaterra e País de Gales

Mortes
em 2020

MÉDIA HISTÓRICA

MORTES ACIMA DA MÉDIA
MORTES REPORTADAS POR COVID-

4.
2.

JAN DEZ

15 MIL MORTES
POR SEMANA

5 MIL MORTES
POR SEMANA

10 MIL MORTES
POR SEMANA

l Conta da tragédia

TAMAS KOVACS/EFE–19/4/

Crise. Médicos no combate ao coronavírus em Budapeste

Líderes autoritários


recebem verba da UE


mesmo após ataques


frequentes à democracia
em seus países


WILLY KURNIAWAN/REUTERS

“Qualquer número relatado
em um determinado dia
será uma subestimação
grosseira”
Tim Riffe
DEMÓGRAFO DO INSTITUTO MAX PLANCK

New York Times contabiliza total de óbitos acima da média em


meio à crise do coronavírus, o que indica subnotificação de vítimas
Alerta. Enterro em Jacarta: houve alta nos sepultamentos


Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
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