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achado tão importante que Freud con-
siderou esse método da associação livre
a “regra de ouro da psicanálise”.
Não que fosse perfeito, claro. Psica-
nalistas logo perceberiam a atitude de
pacientes conhecedores da “regra de
ouro”, que, propositalmente ou não,
passam a falar incoerência atrás de in-
coerência, com o objetivo de inviabili-
zar uma interpretação correta. Ainda
que a coerência não seja critério do que
vale ou não vale numa sessão psicana-
lítica. Pelo contrário: na fala do pacien-
te, vale tudo – desde que seja espontâ-
neo, livre de censura ou premeditação.
Transferência
Freud descobriu mais um elemento
importante para sua psicoterapia ao
tratar de Dora – outro nome fictício,
o verdadeiro era Ida Bauer –, uma ga-
rota de 18 anos que, ao longo do trata-
mento, começou a associar o terapeuta
à figura do próprio pai, por quem era
muito apegada. Lá pelas tantas, Dora
interrompeu de repente o tratamento
e se despediu de vez, para nunca mais
voltar – um comportamento esquisito
porque, até então, as sessões pareciam
estar progredindo bem.
Freud reconheceu nesse comporta-
mento uma vingança contra um pai
simbólico – ele, no caso – que não aten-
desse às vontades da menina. E enten-
deu que era importantíssimo identifi-
car essa tendência de os pacientes
substituírem alguém importante de
suas vidas pela pessoa do terapeuta.
Porque isso poderia apontar sinais de
desejos inconscientes.
Para esse processo ficar mais claro,
vale a pena eu explicar o que é o setting
na clínica psicanalítica. São os arranjos
práticos que organizam a interação
entre terapeuta e analisando: o horário
das sessões; a forma como o analisan-
do ficará acomodado – na psicanálise
clássica, deitado de costas para o tera-
peuta, mas outras terapias que usam
conceitos da psicanálise colocam os dois
sentados frente à frente –; o estilo do
terapeuta – alguns nem dão bom-dia
para o analisando, e isso pode ser dito
nessa combinação inicial –; a duração
das sessões; a duração do tratamento
e, inclusive, a data certa de o analisan-
do pagar pelas sessões.
Tá, mas o que isso tudo tem a ver com
a transferência? Muita coisa. Por exem-
plo, se o analisando começa a atrasar o
pagamento, ao mesmo tempo em que
fala na associação livre sobre sua roti-
na de esbanjar dinheiro – ou seja, gra-
na não lhe falta –, o terapeuta pode
identificar aí um desejo de magoar um
pai ou uma mãe, deslocados para a fi-
gura do psicanalista – que, coitado, é
quem fica esperando pelo dinheiro.
Outras desobediências, como chegar
atrasado ou ficar em pé durante a ses-
são – contra a combinação de que de-
veria estar sempre deitado –, revelam
também indícios de transferência.
Daí a necessidade de uma contratrans-
ferência, que basicamente é o terapeu-
ta identificar como esses deslocamen-
tos acontecem e usar essa percepção a
seu favor – dando o melhor rumo pos-
sível ao tratamento. Quem seria a pes-
soa que o analisando está transferindo
para a pessoa do terapeuta? Sua mãe?
Sua namorada? Seu personal trainer?
Claro que não é tão fácil assim. O que
fazer, por exemplo, quando o analisan-
do parece estar apaixonado pelo psica-
nalista, transferindo para essa pessoa
um desejo reprimido por outra?
O terapeuta não pode misturar as
coisas. Não pode ceder a arroubos ro-
mânticos nem sair do sério por causa
dos desrespeitos que a transferência
pode provocar. Para ter esse sangue frio
e investigar seus próprios sentimentos
para com essa interação delicada, reco-
menda-se que também o terapeuta
passe por sessões de psicanálise. O
inconsciente alheio é uma terra que
pode ser bastante hostil, e é comum
pedir reforços.
Interpretação
Durante um período complicado de sua
vida, na época em que seu pai morreu,
Freud fez autoanálise. Passou a inter-
pretar os próprios sonhos, suas lem-
branças e pensamentos para chegar a
conclusões sobre sua personalidade
- um exercício de autoconhecimento.
Mas não tente repetir em casa. A inter-
pretação dos conteúdos inconscientes
que chegam à consciência só pode ser
feita por um psicanalista treinado. Os
pensamentos que emergem da associa-
ção livre, por exemplo, raramente fazem
referência direta ao conflito psíquico.
“É bem raro que as lembranças verda-
deiramente patogênicas se encontrem
assim na superfície”, disse Freud. Se-
gundo ele, o que costuma surgir é um
Sigmund Freud (ainda menino
aqui) decidiu fazer autoanálise
para entender seus sentimentos
diante da morte de seu pai.
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