Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

28 FREUD


não tinha como suspeitar mais
de um século atrás. Por exemplo,
já é possível entender como a
criatividade se relaciona com o
período em que estamos baban-
do no travesseiro.
Quando você adormece, há
uma primeira fase em que a
consciência vai se dissipando,
ativando no cérebro um proces-
so de consolidação da memória.
Já na fase seguinte, a REM (ra-
pid eye movement, “movimen-
to rápido dos olhos”), a ativida-
de cerebral é mais complexa,
parecida com a que temos quan-
do estamos acordados, e é quan-
do sonhamos. Nessa fase, são
gerados padrões mais variáveis
entre os neurônios, com a ca-
pacidade de recombinar circui-
tos existentes. Isso é o cérebro
sendo criativo.
Associar o sonho com o esta-
do REM não é novidade. Mas
um estudo divulgado em abril
de 2017, pela Universidade de
Wiscosin-Madison, nos Estados
Unidos, revelou que sonhamos
também fora dessa etapa e fez
uma descoberta ainda mais im-
portante: identificou quais par-
tes do cérebro são ativadas
durante os sonhos. Isso mostrou
que, para a nossa mente, sonhar
tem muita semelhança com es-
tar acordado. “Os sonhos são
uma forma de consciência que
acontece durante o sono”, ex-
plicou o professor de psiquiatria
Giulio Tononi, autor do estudo.
Um de seus experimentos, que
colocou 46 voluntários para
dormir, mostrou que, estando
ou não o dorminhoco na fase
REM, sonhos só surgem quan-
do regiões corticais posteriores
do cérebro são ativadas.
Para Sigmund Freud, mais que

a criatividade capaz de surgir
nas noites inquietas, interessa-
va o papel desse processo no-
turno na manifestação de de-
sejos inconscientes. Por isso, o
que há de revolucionário e
permanente naquele que talvez
seja o livro mais importante de
Freud, A Interpretação dos So-
nhos, não é sua tentativa de
traduzir psicanaliticamente
sequências de imagens sonha-
das – o que ele faz bastante ao
longo da obra, diga-se –, e sim
a relação que pode existir entre
o sonho e a forma como a nos-
sa mente funciona. “O sonho é
a estrada real que conduz ao
inconsciente”, ele escreveu.
Anotar os próprios sonhos era
um dos hobbies de Freud, tan-
to que ele mantinha um diário
com tudo o que lembrava de ter
sonhado. Naquele período difí-
cil de sua vida, em que fez au-
toanálise, Freud reuniu 160
sonhos para compor um livro


  • decisão tomada em 1897. Com
    a exceção de um sonho de in-
    fância, todos os outros tinham
    sido sonhados entre 1895 e
    1899, quando ele já era quaren-
    tão. Dessa coletânea onírica, 70
    foram contados por amigos e
    parentes – Freud evitava usar
    sonhos de pacientes porque
    achava que condições anormais
    da psique poderiam sabotar as
    interpretações.
    A noção de que produzia ali
    uma obra magistral também o
    fez ver melhor, via autoanálise,
    o objetivo da coisa toda: o livro
    que o tornaria famoso era uma
    reação à morte recente de seu
    pai, o homem que um dia lhe
    disse, quando Sigmund era me-
    nino, que o pequeno nunca
    seria alguém na vida.


IntERpREtaR sonhos, claro, não foi invenção
de Freud. A prática de achar que o sonho
significa alguma coisa, e tentar dar sentido
a ele, é tão antiga quanto o Homo sapiens.
Foram egípcios e assírios os primeiros a
registrar por escrito essas interpretações.
Para os antigos, o sonho era uma forma de
comunicação com os deuses, e prevalecia
o caráter premonitório. Reis chegavam a
contratar tradutores de sonho para saber
como seria uma batalha ou se o país teria
dificuldades econômicas em breve. O livro
do Gênesis, na Bíblia, traz uma passagem
que exemplifica bem essa preocupação
dos nossos antepassados com sonhos e
pesadelos: é a história de José no Egito.
Bisneto de Abraão – o primeiro dos
patriarcas bíblicos –, José é convocado para
interpretar um sonho esquisitão do faraó
do Egito: ele sonha que sete vacas magras e
feias devoram outras sete, gordas e bonitas. E
também que sete espigas de milho miúdas e
queimadas devoram outras sete, muito mais
apetitosas. Então José mata a charada. Viriam
sete anos de fartura seguidos de sete anos de
terra infértil. Aconselha o faraó a economizar
na riqueza para não faltar na hora da miséria.
Coisa de gente primitiva, né? De um tempo
em que um raio era encarado como um sinal
divino, etc. etc. etc. Não é bem assim. A ideia
de que um sonho pode ser uma antevisão
do futuro permanece forte até hoje – ainda
que seja algo tão científico quanto os
malefícios de misturar manga com leite.
Quem nunca ouviu que sonhar com
dente é sinal de morte na família? Para o
astrólogo brasileiro João Bidu, que explica os
significados de todo tipo de sonho em sua
página na internet, só é morte se o dente
estiver apodrecido. Se aparecer bonito e
sadio, significa prosperidade financeira à
vista. Já perder um dente no sonho, segundo
o esotérico midiático, é sinal de que o homem
vai perder outra coisa: sua potência sexual.
Todo o conhecimento científico que nos separa
do Egito Antigo não nos poupou da crença
de que os sonhos usam dentes perfeitos ou
cariados para expressar seu poder de oráculo.
Já Sigmund Freud, com a pretensão de
estabelecer uma análise do sonho que pudesse
incorporar à sua “ciência da mente”, afastou-se
das interpretações premonitórias e dos
misticismos. Mas concordou com os antigos
egípcios em uma coisa: os sonhos faziam
sentido, sim. E podiam ser interpretados.

Do Egito Antigo à


astrologia de internet


A interpretação do estado
onírico era essencial aos estudos
de Freud: “O sonho é a estrada
real que conduz ao inconsciente”.

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