Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

DOSSIÊ SUPER 31

Apesar de toda a contrariedade
a respeito dos “dicionários de
sonhos” e seus significados
pré-moldados, Freud não
escapa de também ter o seu
glossário, ainda que numa
versão miniatura. Ele diz respeito
apenas a uma categoria onírica:
os chamados sonhos típicos.
Para Freud, esses sonhos são
exceções no que diz respeito ao
processo de interpretação. Sem
depender tanto das associações
livres, eles têm significados
prontos e gerais, que devem
valer para qualquer sonhador.

Pelado na
frente dos outros
Freud diz que o sonho da nudez
tem origem na experiência
infantil de ficar pelado na
frente de adultos. Sonhar com
isso é desejar uma volta ao
paraíso da infância, um período
desprovido de vergonha – e de
responsabilidades, pressões,
boletos para pagar e demais
chateações da vida adulta.

Morte de um irmão
A chave da questão, de acordo
com o austríaco, é que o mundo
mágico dos sonhos é atemporal:
eles podem tratar de desejos

reprimidos recentes, mas
também podem manifestar um
desejo que você teve quando
tinha 6 anos de idade. Uma época
em que, pelo menos dez vezes por
dia, uma criança pode desejar a
morte do irmão – seu concorrente
direto pelo amor dos pais, pelos
brinquedos mais bacanas da
casa, pela atenção de avós...

Morte do pai
ou da mãe
Teria a ver com egoísmo infantil
também, aqui associado ao
complexo de Édipo. “É como
se uma predileção sexual se
declarasse de maneira precoce,
como se o menino e a menina
vissem respectivamente no
pai e na mãe os seus rivais no
amor, cuja eliminação só lhes
poderia trazer vantagens.”

Sonho de voar
Freud diz ainda que o sonho
típico de estar voando ou de
cair de um lugar alto são outros
retornos à infância do sonhador,
ao desejo inconsciente de repetir
as brincadeiras de Superman
ou Mulher-Maravilha, em
que adultos nos levantavam
e nos giravam ao redor da
sala, dizendo que estávamos
voando. Talvez pelados.

SONHOS TÍPICOS


ao sonhar que estava dirigindo uma Ferrari
vermelha, não tinha o óbvio e universal de-
sejo de ter esse carrão na garagem. Mas, sim,
um desejo inconsciente de que sua irmã, seu
irmão e sua mãe – todos ruivos – tivessem
uma situação financeira melhor. Os elemen-
tos originais do conteúdo latente, portanto,
são três pessoas da sua família, que o sonho
condensou no conteúdo manifesto em um
único elemento: um carro esportivo caro, que
exige uma situação financeira confortável
do proprietário – e que é da cor do cabelo
dos seus familiares.

Interpretando sonhos
Como já vimos, Freud foi um adepto da auto-
análise e, sendo ele o inventor da coisa toda,
julgava-se capaz de interpretar os próprios
sonhos. Mas a recomendação é que a pes-
soa conte com um analista para chegar aos
significados. A interpretação dos sonhos na
psicoterapia, segundo o método freudiano,
também se dá por meio da associação livre,
que vimos no capítulo anterior.
No relato para o psicanalista, o paciente é
encorajado a dizer qualquer coisa que os
elementos do sonho despertem em sua men-
te. Se ele tiver sonhado com um pastel, po-
derá dizer algo como “havia uma feira na rua
em que eu morava na adolescência”. O ana-
lista, então, poderá estimulá-lo a falar dessa
rua, e a primeira coisa que virá à mente dele
poderá ser “na esquina morava uma menina
que eu achava linda, mas nunca tive coragem
de falar com ela”... Talvez o processo chegue
à conclusão de que o sonho do rapaz tinha
na origem um desejo muito mais romântico
do que deixaria supor a visão de um pastel
de palmito encharcado de óleo. Mas por que
essa história de amor sem final feliz seria
reprimida pelo trabalho do sonho? Talvez
porque lembrasse que a abordagem à moça
só não aconteceu por conta de uma timidez
que ainda é uma tortura na vida do sonhador.
Freud também explica que pode haver mui-
ta pegadinha nesse processo. “A interpreta-
ção depende da forma como o sonho foi
contado.” Sim, para o pai da psicanálise, não
é exatamente o que você lembra do sonho
que vai expressar o conteúdo latente. E sim
a forma como você o relata – porque ao lon-
go das associações livres o sonho se trans-
forma, vai daquela lembrança estática para
uma narração, um trabalho em movimento.
Daí a importância da sessão no divã.
Você pode ter sonhado com Mickey Mou-
se beijando seu tio João, aos pés do Cristo
Redentor, enquanto nevava dentes-de-leão
no Rio de Janeiro. Mas o que você enfatiza

iMAgEnS: Getty Images

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