Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

30 FREUD


não aceitava a própria homossexuali-
dade, o desejo guardado nos cafundós
da mente é tão insuportável para a
consciência que ela o reprime. (Daí
tanta gente ser chamada de reprimida


  • pessoas que lidariam mal com a
    própria personalidade porque têm
    dificuldade de se aceitar como são.)
    A repressão no caso do sonho é uma
    autocensura que impede que nossos
    desejos mais incômodos cheguem
    claramente à nossa consciência. Há,
    portanto, duas forças opostas atuando
    no trabalho do sonho: de um lado, um
    desejo inconsciente que quer, sim, se
    manifestar; do outro, uma censura que
    quer poupar a consciência dos proble-
    mas que essa manifestação traria.
    O sonho nasce, assim, de um dos
    conceitos essenciais da psicanálise,
    que é o conflito psíquico. Mas não


que esse conflito seja ruim. Porque
ele também é a maneira que a nossa
mente encontra para deixar o resul-
tado dessa briga satisfatório para
ambas as partes. A censura prevalece


  • o homossexual latente achou que
    estava tendo um pesadelo em que
    provavelmente seria assaltado pelo
    bando de fortões. Mas o desejo re-
    primido também encontra, graças às
    maluquices desse mecanismo de
    transformação, um jeito de driblar a
    censura – e ver a luz da consciência,
    por meio do perfume agradável que
    os bandidões emanavam.
    Essa maquiagem que o trabalho do
    sonho aplica no conteúdo latente – e
    que eu acabei de chamar bem tosca-
    mente de maluquices – tem modos
    diversos de operar, mas é sempre o que
    Freud chama de uma distorção.


O sonho é um mestre
dos disfarces

As duas principais distorções que agem
sobre os seus desejos inconscientes, no
âmbito dos sonhos, são o deslocamento
e a condensação.
O deslocamento é quando o sonho
transforma em outra coisa o verdadei-
ro elemento que o inconsciente quer
manifestar. Ou seja, ele desloca o mo-
tivo da sua emoção reprimida para
outro elemento, de forma a não abrir o
jogo sobre com quem – ou com o quê


  • o seu desejo está lidando. Um exem-
    plo: um paciente de Freud tinha raiva
    de sua cunhada e costumava referir-se
    a ela como uma cadela. Um belo dia,
    esse indivíduo sonhou que estava es-
    trangulando um cachorrinho branco.
    O deslocamento operado pelo sonho
    fez com que o homem acordasse leve-
    mente incomodado por ter sonhado que
    matava um animalzinho. Mas o livrou
    de uma culpa maior: o desejo incons-
    ciente de assassinar a própria cunhada.
    Essa distorção acontece também
    quando estamos despertos. Alguém tem
    um dia desgraçado no trabalho, termi-
    nando com uma discussão com o che-
    fe, que considera um tirano sem cora-
    ção. Aí chega em casa e dá um chute
    no gato. Para a pessoa, foi mais fácil dar
    um pontapé no bichano que no empre-
    go – ou, literalmente, no chefe. Além
    disso, a filhinha que testemunhou o
    golpe no animal pode passar a ter fobia
    de felinos, deslocando seu medo original
    do ato violento – mais fácil evitar gatos
    que temer o pai para o resto da vida.
    Já o processo de condensação é juntar
    no sonho – condensar – duas ou mais
    ideias em uma só. Por exemplo, você
    tem diversas preocupações relacionadas
    a segurança: a da sua mãe, que já é ido-
    sa e mora sozinha; a do seu dinheiro, que
    anda curto; a do seu carro, que passa a
    noite toda estacionado na rua, à mercê
    dos bandidos. Então você sonha com um
    castelo. Talvez um castelo que o proteja
    no sonho do ataque de um dragão saído
    de Game of Thrones. Mas esse castelo

  • talvez você descubra na psicanálise – foi
    o elemento que a distorção achou para
    condensar uma série de desejos de ter
    mais segurança – para diversos aspectos
    ou pessoas da sua vida.
    Outro exemplo: alguém pode desco-
    brir, pelo processo psicanalítico, que,


Seres mitológicos, situações
bizarras... Segundo Freud, a
historinha sem pé nem cabeça,
do sonho, é o conteúdo mani-
festo, que usa de substituições
nonsense para disfarçar pen-
samentos traumatizantes.

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