Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

32 FREUD


no relato desse sonho durante a análise
são os olhos do Cristo, que estavam pu-
xados como os de um japonês. Talvez se-
ja esse detalhe – o menos absurdo da cena
toda – que vá levar o analista a conduzir
as associações que você fará para chegar
ao significado.
Essa interpretação, na psicanálise, funcio-
na na direção contrária do trabalho do so-
nho. O sonho parte de um desejo incons-
ciente – conteúdo latente – que passa por
uma distorção para aparecer, de modo meio
amalucado, na consciência. Já o trabalho de
análise faz o caminho inverso. Ele parte
desse conteúdo manifesto destrambelhado,
que é o relato que você apresentou, para
desfazer a distorção por meio da associação
livre, e assim chegar ao início do processo:
seu desejo inconsciente e reprimido.

Cada um é cada um
Se tinha algo que tirava Freud do sério era
alguém mencionar uma coisa lida num des-
ses “dicionários de sonhos” (cujas versões
modernas você pode consultar livremen-
te no Google). Como o pai da psicanálise
também ficou famoso por dar significados
sexuais a grande parte dos pensamentos
inconscientes, uma paciente certa vez lhe
disse que havia sonhado com um peixe que
não parava de se mexer e, antes que Freud
tivesse chance de dizer qualquer coisa, a
mulher tratou de fazer sua própria inter-
pretação: devia ser um pênis!
Só que não. Pelo método da associação
livre, Freud descobriu que a mãe da mulher
era apaixonada por astrologia, e que era
do signo de Peixes. Achou plausível que
essa mãe devesse andar pela cabeça da
paciente porque ela desaprovava o fato de
a filha estar se tratando com Freud. Por
isso, segundo ele, era muito mais provável
que o peixe fosse um deslocamento por
trás do qual estivesse a mãe da paciente...
e não um pênis.
Fosse tão simples assim, todo quiabo, pei-
xe-espada, pepino, foguete, arranha-céu,
berinjela representariam pintos nos nossos
sonhos. Mas, para Freud, nada é tão simples.
Segundo ele, o sonho e seus significados
são um conjunto sob medida: só servem
para aquele indivíduo. E isso desautoriza a ideia
de que dente significa morte ou que matar uma
cobra num sonho é sinal de que você vai ter
uma vitória sobre pessoas que estão atrapalhan-
do o seu sucesso (ver João Bidu). Para cada um,
dente, cachorro e cobra podem significar
coisas totalmente diferentes.

Durante a Primeira Guerra Mun-
dial, quando tratava de soldados
num hospital neurológico, o fran-
cês André Breton teve um primei-
ro contato com a obra de Freud.
Esse escritor, que publicaria o
Primeiro Manifesto Surrealista,
em 1924, ficou fascinado pelas
teorias sobre o inconsciente,
que influenciariam muito o seu
trabalho. Os postulados freudia-
nos sobre os sonhos pareciam
encaixar-se perfeitamente nas
ideias dos jovens expoentes do
surrealismo, para quem esse con-
teúdo, desprovido das limitações
da realidade, era matéria-prima
para a arte. Uma empolgação
enorme por Freud que nunca foi
recíproca. O pai da psicanálise
não gostava das obras dos surre-
alistas e achava que eles nunca
entenderam o seu trabalho.
Breton fez arranjos para visitar
seu ídolo em 1921, em Viena, mas
saiu tão decepcionado do en-
contro que se recusou a falar do

assunto, mesmo com sua esposa.
Mais de duas décadas depois
desse encontro, foi a vez de
Salvador Dalí se encontrar com
o mestre do inconsciente – já em
Londres, pouco antes da morte de
Freud. Na ocasião, Dalí mostrou
ao austríaco seu quadro A Meta-
morfose de Narciso – bem ao seu
estilo onírico, incorporando uma
flor que brota de uma rachadura
na casca de um ovo, o que repre-
sentaria a cura simbólica para os
males do narcisismo. Freud, no
entanto, não se impressionou.
Disse a um amigo, o escritor vie-
nense Stefan Zweig, que gostaria
de estudar psicanaliticamente
como um quadro daqueles po-
deria ter sido pintado. E, para o
próprio autor da obra, Freud foi
direto também: “Na pintura clás-
sica, eu procuro o inconsciente.
Na pintura surrealista, preciso
achar a consciência”. Dalí recebeu
esse comentário como uma sen-
tença de morte do surrealismo.

FREUD E O SURREALISMO


A Metamorfose de Nar-
ciso, de Salvador Dalí.
(Freud não gostou.)

imagem: Getty Images

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