DOSSIÊ SUPER 51
Quanto menos literal é a
interpretação que se faz dessas
ideias sobre a sexualidade femi-
nina, menos revoltante a coisa
fica. Ainda mais levando em
consideração o contexto cul-
tural em que Sigmund Freud
elaborou tudo isso. Se, em ple-
no século 21, a mulher ainda
precisa lutar por igualdade de
oportunidades em relação aos
homens, é evidente que, lá na
Viena da virada do século 19
para o 20, as senhoras que che-
gavam ao consultório de Freud
- fornecedoras da maior parte
do conteúdo das elaborações do
doutor – também queriam ter o
que os homens tinham. Quan-
do se pensa literalmente num
membro viril como objeto desse
desejo, não dá para concordar
com quase nada do que Freud
disse. Mas, pensando no paco-
te que vinha junto com aquele
pênis – autoestima, autoridade,
influência, liberdade, privilégios
–, pelo menos o conceito central
da inveja do pênis faz sentido.
Basta trocar a expressão por
“inveja do poder”.
O próprio complexo de castra-
ção dos meninos fica mais tole-
rável sob esse ponto de vista. Na
explicação literal de Freud, o
garoto sente o temor de perder
o pênis quando chega à idade de
perceber as diferenças entre eles
e elas, e nota que as meninas não
têm o que ele tem. “Se cortaram
o piu-piu delas, pode ser que
queiram cortar o meu também.”
Esse é o raciocínio, segundo
Freud. Mas pense que notar di-
ferenças entre feminino e mas-
culino, principalmente cem anos
atrás, significava perceber que,
enquanto as meninas eram edu-
cadas para ficar quietas à mesa,
não sair de casa e repetir os tra-
balhos domésticos da mãe, os
meninos eram estimulados pa-
ra a aventura, demonstrações de
força e planos de grandeza. Per-
der esse “pênis”, essa nítida van-
tagem em relação às restrições
das meninas, seria, claro, motivo
para ansiedade.
Ainda assim, é notório que a
psicanálise clássica patinou ao
tratar do desenvolvimento se-
xual na mulher – e que o perfil
conservador de Sigmund Freud
tem toda a culpa nisso. Seu fun-
damentalismo fálico – a noção
de que toda a sexualidade, deles
e delas, parte do pênis, ou do
homem, melhor dizendo – tor-
nou-o incapaz de reconhecer a
individualidade feminina. A
visão de que a sexualidade delas
é mero desdobramento da deles
tem uma jurisprudência tão ma-
chista e mítica quanto a pers-
pectiva freudiana: Eva, a primei-
ra mulher, que nasce de uma
costela de Adão.
Se Sigmund Freud não conse-
guiu superar os próprios precon-
ceitos nessa empreitada, ao
menos reconheceu desde sem-
pre as lacunas do seu pensamen-
to nesse assunto. Costumava
dizer que os escritores e os po-
etas provavelmente seriam can-
didatos mais preparados para
decifrar o enigma da sexualida-
de feminina.
Sua confissão dessa incapaci-
dade ficou famosa. Em conver-
sa com a amiga Maria Bonapar-
te – psicanalista que era sobri-
nha-bisneta de Napoleão –,
Freud assumiu: “A grande ques-
tão que nunca foi respondida, e
que eu ainda não tenho sido
capaz de responder, apesar de
meus 30 anos de pesquisa sobre
a alma feminina, é: o que quer
uma mulher?”.
Q
FREUD SABIA
Q U E N Ã O
SABIA
Ele admitiu ignorar
a mente feminina. Mas
sua teoria pode fazer
sentido (não literal).
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