DOSSIÊ SUPER 65
Sigmund Freud também espe-
cula sobre como a civilização
poderia controlar esses nossos
demônios homicidas – para
que tudo não acabe em cinzas.
Ele logo rejeita a ideia de que o
comunismo seria uma solução
apaziguadora por reduzir o
poder individual e promover um
desfrute comunitário de todos
os bens. “Nada mudamos no que
toca às diferenças de poder ou
de influência que a agressividade
usa para os seus propósitos, e
tampouco na sua natureza. Ela
[a pulsão agressiva] não foi cria-
da pela propriedade [privada].”
Um dos caminhos que ele aponta
está no próprio conflito psíquico.
A tensão entre ego e superego
instala um “sentimento cons-
ciente de culpa”, manipulado
pela civilização para que nem
pensemos em atos condená-
veis – já que nos culpamos
até por pensar em coisa ruim.
E a religião, segundo Freud,
soube se aproveitar muito bem
disso inventando um sinônimo
para o sentimento de culpa: o
pecado. É uma emoção que tem
origem também no medo da
autoridade, algo que surgiu lá
na primeira infância, deslocada
a partir da figura paterna, e que
acaba lotando as igrejas de fiéis
tementes a esse Pai, tão protetor
quanto punitivo: Deus, é claro.
ENTÃO VAMOS ACABAR
NOS MATANDO?
Como conta o jornalista Felipe van Deur-
sen no livro 3 Mil Anos de Guerra (outra
publicação da SUPER), estudos apontaram
que nosso rosto é do jeito que é para aguen-
tar socos. “Cientistas analisaram crânios de
homens modernos e de australopitecos e
concluíram que as partes que sofrem mais
fraturas (mandíbula e as regiões próximas a
olhos, nariz e bochechas) são as que desenvol-
veram mais resistência”, conta Van Deursen.
“Ou seja, quanto mais se apanhava, mais os
ossos fortes eram selecionados para serem
passados adiante a cada geração, de modo a
suportar mais pancadas.”
Para que sejamos cidadãos civilizados, pa-
gadores de impostos, devemos negar as exi-
gências mais fortes das nossas pulsões, que
clamam por sexo sem-vergonha e agressão
ao próximo – impulsos de vida e de morte
que nos transformam nessa máquina bípede
que você vê no espelho. O passo cultural
decisivo seria a substituição do poder do in-
divíduo, “condenado como força bruta”, pelo
da comunidade. E isso acontece estabelecendo
limites às possibilidades de gratificação do
homem – pela consolidação do Direito. Para-
doxalmente, essa mesma comunidade cheia
de proibições pode agir eventualmente como
se fosse um indivíduo ultraviolento, atacando
outros grupos em troca de territórios ou influ-
ência política. Mas nós, seres pequenininhos
na nossa individualidade, não podemos.
Então, como não queremos que nossos fi-
lhos tenham de nos visitar na cadeia, nossas
pulsões condenáveis buscam saída em ativi-
dades sublimadas – como ser viciado no game
Grand Theft Auto em vez de sair atropelan-
do pessoas, ou canalizar a sua energia sexual
para um curso de cupcakes. “A sublimação
torna possível que atividades psíquicas mais
elevadas, científicas, artísticas, ideológicas,
tenham papel tão significativo na vida civi-
lizada”, afirma Freud. “É o destino imposto
à pulsão pela civilização.” O problema é que
essas realizações substitutas jamais conse-
guem o nível de satisfação do cumprimento
do impulso original.
E o ser humano, lá no fundo, sabe disso,
apesar de passar a vida tentando se enganar.
Assim, no caso extremo em que a pulsão de
morte fala mais alto, e as censuras do supe-
rego não dão conta do cavalo selvagem do
id, indivíduos se rebelam contra sua própria
cultura com uma agressividade que excede
bastante o nível da agressão originalmente
suprimida, ameaçando a sociedade de desin-
tegração. E o que vem em seguida pode ser
um tiroteio dentro de um cinema ou um avião
se chocando contra prédios cheios de civis.
imAgEm: Getty Images
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