Piauí - Edição 152 [2019-05]

(Antfer) #1

vontade de nos abandonar naquela noite estranha, tomados pela
sensação de estarmos vivendo em ritmo acelerado a extinção da
humanidade. Milhões de anos cósmicos passavam diante de nossos olhos
cobertos com óculos escuros. Os rostos cegos erguidos para o céu
pareciam esperar a chegada de um deus ou do cavaleiro branco do
Apocalipse. O Sol reapareceu e as pessoas aplaudiram. O próximo eclipse
solar aconteceria em 2081, não estaríamos aqui para ver.


Enfim, chegamos ao ano 2000. Tirando os fogos de artifício e uma euforia
urbana previsível, não houve nada de especial. Ficamos decepcionados, o
bug previsto era uma farsa. Seis dias antes tinha ocorrido outro evento,
que logo ficou conhecido como “a grande tempestade”, surgida do nada.
Foi à noite e, em poucas horas, ela derrubou milhares de postes, destruiu
florestas, arrancou telhados, seguindo seu caminho de norte a sul e de
oeste a leste, matando com delicadeza apenas uma dúzia de pessoas que
estavam no lugar errado na hora errada. Pela manhã, o Sol iluminou
pouco a pouco a paisagem destruída, com a beleza própria da
devastação. Aqui começava o terceiro milênio. (Houve quem tenha
pensado em uma vingança misteriosa da natureza.)


Nada mudou, exceto o insólito número 2 que agora ficava no lugar do 1,
fazendo a caneta se equivocar ao escrever a data nos cheques. Após um
inverno leve e chuvoso como os anteriores, a lembrança das “diretivas
europeias” de Bruxelas, o “boom das startups”, e uma espécie de
melancolia no lugar do entusiasmo esperado. Os socialistas governavam
sem chamar a atenção. As passeatas diminuíam. Não íamos mais à
manifestação dos imigrantes ilegais.


Com alguns meses de atraso em relação à chegada do século, o avião dos
ricos, o Concorde, que ninguém que a gente conhecia pegava, caiu na
região de Gonesse e rapidamente desapareceu da memória, passando
para a mesma época do general De Gaulle. Um homenzinho gélido, de
ambições impenetráveis, com um nome, enfim, de fácil pronúncia, Putin,
substituiu o beberrão Yeltsin e prometeu ir atrás dos tchetchenos até o
fim do mundo para “acabar com eles”. A Rússia já não transmitia
esperança nem medo, apenas um sentimento de desolação perpétua. Ela

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