O Estado de São Paulo (2020-06-02)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 2 DE JUNHO DE 2020 Especial H3


Mônica Nóbrega
ESPECIAL PARA O ESTADO


No exato momento em que vo-
cê lê este texto, um habitante de
Roma contempla a Fontana di
Trevi vazia ou quase. As dez se-
manas de confinamento total le-
varam ao declínio consistente
da curva de contaminações e
mortes por covid-19, e a Itália
começou sua lenta reabertura.
Moradores já podem sair às
ruas, mas os turistas – apenas os
da própria Europa – só serão au-
torizados a voltar a partir de
amanhã, se nada mudar.
Situações novas trazem voca-
bulário novo. Temos agora o
lockdown que, a partir deste
2020, resume os muitos signifi-


cados deste momento de exce-
ção que vivemos por causa da
pandemia. Lockdown significa
se trancar em casa, entre incer-
tezas sobre o futuro, sem poder
ver nem abraçar pessoas queri-
das, e se escondendo de uma
ameaça ao mesmo tempo invisí-
vel e mortífera.
Foi assim com o tsunami,
lembra? O da Indonésia, em
2004, foi o maior tremor já re-
gistrado por um sismógrafo.
Fez ondas de até 30 metros de
altura avançarem sobre 14 paí-
ses e matarem 230 mil pessoas.
Impôs uma nova palavra ao nos-
so repertório; não tinha como
chamar aquilo de maremoto,
que é como se dizia antes.
Pois a Itália foi o primeiro
país no mundo a determinar
lockdown para toda a sua popu-
lação, em 9 de março. Logo apa-

receram as fotos dos pontos tu-
rísticos desertos – a do Papa
Francisco abençoando uma
Praça de São Pedro completa-
mente vazia foi uma das mais
impactantes.
Apesar de já ter ido a diferen-
tes lugares na Itália – Milão, Ve-
rona, Veneza, Gênova, Nápo-
les, boa parte da Sicília – Roma,
por variados motivos, sempre
foi deixada para depois. Ano
passado, no frio de janeiro, foi a
minha primeira vez na capital.
No fim de um dia gelado e
azul, depois de uma caminhada
pela margem do Rio Tibre e de
admirar longamente o Coliseu
iluminado, encontrei a Fontana
di Trevi cercada pela multidão
de sempre. Eu não esperava na-
da diferente disso. Mas também
não esperava me sentir tomada
por tamanho encantamento. Sa-

be como é: sou uma viajante ex-
periente demais, descolada de-
mais para me deslumbrar por
um ponto turístico tão batido.
O plano era passar rapidinho pe-
la fonte, tirar uma foto e seguir
para algum outro lugar mais, di-
gamos, autêntico. Risos.
Deixa eu contar uma coisa pa-
ra quem ainda não foi. A Fonta-
na di Trevi é muito maior do
que parece em todas as fotos
que você já viu. A composição
formada pela estátua de Netu-
no, no centro, mais a fachada
do Palazzo Poli, onde a fonte
está encostada, tem uma di-
mensão monumental. Não ca-
be no enquadramento da
máquina fotográfica. A perfei-
ção das esculturas de mármo-
re, a iluminação, o barulho da
água, alto mesmo com todo o
falatório em volta, tudo isso me

emocionou. O ritual de jogar
moedas e fazer pedidos é uma
tolice, sim. Mas é bonito de ver
ao vivo, como uma expressão
de esperança. E rende à cidade 1
milhão de euros por ano, desti-
nados à caridade.

Cinema. O cinema dá uma di-
mensão mais apurada da magni-
tude da Fontana di Trevi. O
clássico número 1 entre os fil-
mes italianos, La Dolce Vita
(1960), tem uma cena ainda
mais clássica que o próprio lon-
ga que mostra os personagens
de Anita Ekberg e Marcello Mas-
troianni en-
trando em
suas águas.
Pois veio
também do ci-
nema – argen-
tino – a inspi-
ração para ou-
tra experiên-
cia marcante
na minha visi-
ta a Roma.
Tiramisú
foi uma pala-
vra nova para
mim quando
assisti ao lon-
ga O Filho da Noiva (2001). Ra-
fael Belvedere, o protagonista
vivido pelo ator Ricardo Darín,
visita a mãe, uma idosa que tem
a doença de Alzheimer, levando
o doce que é o preferido dela. O
personagem e seu pai conver-
sam longamente sobre mascar-
pone, o queijo base da receita
do tiramisú.
De lá para cá, nunca mais pa-
rei de procurar um tiramisú à
altura da beleza desta cena.
Achei que pudesse tê-lo encon-

trado na capital da Itália quan-
do passei diante da minúscula
doceria Two Sizes, que tinha,
na porta, uma placa discreta
anunciando “o melhor tiramisú
de Roma”.
Entrei e escolhi o sabor tradi-
cional, de mascarpone e café.
As armadilhas pega-turista se
escondem sob os mais variados
disfarces, mas a doceria Two Si-
zes não era uma delas. Achei a
sobremesa gostosa, sem ser im-
perdível. Provavelmente o pro-
blema não é o doce, sou eu, que
acumulei expectativas demais.
Ainda assim, o tal do melhor
tiramisú de
Roma serviu
para me provo-
car um desejo
de retorno,
exatamente
como o Rafael
Belvedere de
Ricardo Darín
dá o doce à sua
mãe desme-
moriada dese-
jando, intima-
mente, o retor-
no dela a ou-
tros tempos.

Quando será possível ir?
A Itália faz parte do espaço Schen-
gen, grupo formado pelos 27 paí-
ses da União Europeia, mais Suíça,
Liechtenstein, Islândia e Noruega,
que tem entre seus princípios a li-
vre circulação entre as fronteiras.
Os europeus poderão voltar ama-
nhã a ser recebidos na Itália. A par-
tir de 15 de junho, e a depender da
evolução da pandemia no continen-
te, líderes da UE devem começar a
propor estratégias para a reabertu-
ra gradual das fronteiras externas.

1000 filmes do Merten


viagem


DE VOLTA À FONTANA DI TREVI


E À BUSCA PELO TIRAMISÚ


PERFEITO


E


o streaming não para. Com
cinema e teatro no fim da fila
das regras de flexibilização,
os lançamentos continuam chegan-
do às plataformas, que estão viran-
do as novas salas, palco para inúme-
ras estreias.
Distribuidores e exibidores já se
indagam o que será do ‘novo nor-
mal’, quando tudo isso tiver passa-
do e o público estiver mais acostu-
mado a ver as coisas nas outras jane-
las que se abriram, e consolidaram.
Uma questão para se discutir.

Mas isso é coisa para depois. O pro-
grama Belas Artes À La Carte segue
com novas atrações, e a Mubi inicia na
quarta, 3, uma parceria com o Festival
Olhar de Cinema, de Curitiba, com oi-
to títulos que marcaram as edições an-
teriores do evento.

A Vizinhança do Tigre
Antes de passar em Curitiba, o longa
de Affonso Uchôa já arrebatara o olho
do cinéfilo ao vencer a Mostra Aurora,
do Festival de Tiradentes. Quatro jo-
vens, quatro amigos da periferia de

Contagem. A cidade que integra a re-
gião metropolitana de Belo Horizonte
virou um dos maiores celeiros de cria-
dores do cinema brasileiro, com reco-
nhecimento internacional. O final,
com os amigos naquele passeio de ska-
te, já é, em definitivo, um momento
digno de antologia.
Disponível na Mubi, a partir de quin-
ta-feira, 4.

Gaviões e Passarinhos
Em 1965, o cineasta italiano Pier-
Paolo Pasolini (1922-1975) já tinha fil-

mes como Desajuste Social, Mamma Ro-
ma e O Evangelho Segundo Mateus no
currículo. Mais do que em qualquer
dos anteriores, ele rompeu com nor-
mas e regras narrativas com esse filme
que não se assemelha a nenhum outro.
Logo em seguida, veio o episódio A Ter-
ra Vista da Lua, de As Bruxas (do qual
também faziam parte Mauro Bologni-
ni, Vittorio De Sica, Franco Rossi e Lu-
chino Visconti), que talvez seja sua
obra-prima. Aqui, a fábula converte-se
em cinema da poesia. Para quem entra
no clima, o episódio de São Francisco,
com Totò, e o corvo intelectual beira o
sublime.
Disponível no Belas Artes À La Carte.

Hahaha

Quem ama Eric Rohmer e a nou-
velle vague nunca vai deixar de reco-
nhecer a importância de Bong Joon-
ho e seu Parasita, mas o melhor do
cinema sul-coreano será sempre
Hong Sang-soo. Não é preciso mui-
ta coisa nos filmes dele. Pessoas be-
bendo, conversando. O que bebem
não dá para conferir, mas a conver-
sas, os afetos são sempre de primei-
ra. Um diretor de cinema e seu ami-
go crítico encontram-se numa cida-
de litorânea. Lembram-se do ano
passado, não em Marienbad, mas ali
mesmo, quando conheceram um
guia cultural que também é poeta e
sua mulher.
Também disponível no Belas Ar-
tes À La Carte.

Nas andanças por Roma, a beleza de pontos (e pratos) clássicos pode


surpreender viajantes; país ensaia reabertura a turistas europeus


MÔNICA NOBREGA

Imponente.
Fontana é maior
do que parece

Cartões-postais. Castelo de Sant’Ângelo, Ponte Vittorio Emanuele e o Rio Tibre: agora, só para moradores admirarem


ADRIANA MOREIRA/ESTADÃO

CAITLIN OCHS/NYT

Tiramisú.
Bom, sem ser
inesquecível

O TAL DO ‘MELHOR
TIRAMISÚ’ DE ROMA
SERVIU PARA PROVOCAR
UM DESEJO DE RETORNO

O RITUAL DE JOGAR
MOEDAS E FAZER
PEDIDOS É UMA TOLICE,
MAS AJUDA A CARIDADE

Grandes joias

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