O Estado de São Paulo (2020-06-05)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:B-4:20200605:
B4 Economia SEXTA-FEIRA, 5 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


ELENA


LANDAU


A


escatológica reunião minis-
terial já foi dissecada por
muita gente, mas, mesmo as-
sim, volto a ela. Não se pode banali-
zar a gravidade do que foi dito ali.
Não é um novo normal. É anormal e
perigoso. O que se viu foi um coro,
quase unânime, em defesa de um
golpe institucional. Ainda bem que
veio a público.
Além do conteúdo, a forma de ex-
pressão das ideias foi chocante.
Nem nas arquibancadas do Maraca-
nã, que sempre frequentei, eu vi al-
go parecido. A ministra Damares,
tão preocupada com obras do dia-
bo, não enxergou o capeta sentado
bem à sua frente.
Muita coisa foi escancarada nes-
se encontro. Ficou patente a urgên-
cia da aprovação da autonomia do
Banco Central. A presença do presi-
dente do BC, tanto no ato de desa-
gravo a Moro, como nessa reunião,
na qual fez coro com os desconten-

tes com a mídia, é inaceitável. A inde-
pendência que Roberto Campos Neto
tem demonstrado na condução da po-
lítica monetária pode ser questionada
pela sua participação na vida política.
Não é bom.
O show dos liberais de pau oco não
passou despercebido. Guedes reve-
lou o que pensa de empresas estatais
e privatização. Se não puder servir a
meus propósitos políticos, tem de
vender essa droga logo, disse ele so-
bre Banco do Brasil. Se não me serve,
vende. Nenhum liberal advoga em fa-
vor da desestatização em causa pró-
pria. Deve ser por isso que não se viu
nenhuma reação sua à entrega do Ban-
co do Nordeste ao Centrão. Foi, en-
fim, privatizado por Valdemar da Cos-
ta Neto.
A inveja do poder de Pedro Guima-
rães era evidente. Onyx deu de pre-
sente à Caixa o monopólio na distri-
buição dos R$ 600. Sendo de capital
fechado, acionistas minoritários não

atrapalham, é o que pensam os libe-
rais deste governo. Governança, cui-
dado com a coisa pública e transpa-
rência só servem para atrapalhar.
Qualquer semelhança com os gover-
nos intervencionistas não é mera co-
incidência.
Com essa proteção legal, a Caixa
aproveitou para expandir sua atuação
no segmento digital. Recusou a ajuda
de instituições financeiras, mesmo
diante das filas nas suas agências. Po-
vo passando necessidade é apenas um
pequeno sacrifício para que o banco

avance na área das fintechs. De que-
bra, esse monopólio vinculou o auxí-
lio ao governo. Já vimos esse filme an-
tes. O populismo não tem ideologia.
Para liberais do Bolsonaro, compe-
tição só é boa no terreno alheio. Esse
governo desmoraliza a desestatiza-
ção. Não querem nem sabem fazer. E
quando a defendem, é pelo motivo
errado.
Temos um ministro Nem Nem:
nem abertura comercial, nem refor-
ma tributária, nem reforma adminis-
trativa, nem privatizações. Nem hu-
manidade.

Em nenhum momento da reunião
houve referência aos milhares de mor-
tos ou aos milhões de desemprega-
dos, que sofrem com uma total falta
de perspectiva, enquanto o governo
amplia os estragos sobre a economia e
saúde com seu combate terraplanista
à quarentena. Em ato falho, o minis-
tro da Economia se refere ao banco de
desenvolvimento como “BNDE”, sem
a letra S, de social. E, sem enrubescer,
apoia os desatinos autoritários de seu
colega da Educação. “Ô presidente, es-
ses valores e esses princípios e o alerta
aí do Weintraub é válido também, co-
mo seu ... Nós tamos aqui por esses
valores.”
É a eterna cantilena dos golpistas
incompetentes; sempre precisam de
mais tempo e liberdade para implan-
tar seu projeto. A culpa é sempre dos
outros.
Após a divulgação da queda do PIB
no 1.º trimestre, Guedes pediu solida-
riedade e cooperação, palavras que
soam falsas em sua boca. Pede a união
da sociedade, não para obedecer ao
que recomendam médicos e cientis-
tas, mas para tentar salvar sua biogra-
fia, já marcada por promessas e deva-
neios não cumpridos. Mas podemos
ficar tranquilos, porque a recupera-
ção será em V, ainda que um V meio
torto, como disse o ministro.
Ninguém está no governo Bolsona-

ro por acaso. Não surpreende que
Salles, Weintraub e Damares não te-
nham sido demitidos. Surpreende
que os demais presentes não te-
nham pedido demissão. Todos se
tornaram coniventes com um pro-
tótipo de ditador que estimula a de-
sobediência civil de uma população
armada.
Tenho pensado em adjetivos para
qualificar o que se passa neste mo-
mento no País. O “inacreditável”
não dá mais conta.
Lia muito com meu filho quando
ele era criança. Sua coleção preferi-
da era uma série de Ziraldo, Corpim,
que conta histórias de partes do cor-
po de forma divertida. O favorito
dele era o Joelho Juvenal. A razão
era menos a anatomia e mais o adje-
tivo usado para ilustrar as artima-
nhas do menino que deixava o joe-
lho todo escalavrado. Meu filho ado-
rava a palavra. Líamos a história re-
petidas vezes e ele gargalhando
com o “escalavrado”.
Hoje, lendo com o neto, lembrei
de Juvenal. E, imediatamente, me
veio a imagem de uma democracia
escalavrada. No dicionário é “o mes-
mo que: arranhada, golpeada, ma-
chucada”. Encontrei meu adjetivo.

]
ECONOMISTA E ADVOGADA

O Joelho Juvenal


E-MAIL: [email protected]
ELENA LANDAU ESCREVE QUINZENALMENTE

Pesquisa aponta ainda


inadimplência de 5,9% no


crédito para consumo e


de 2,3% no habitacional
para pessoas físicas


BC estima alta de


7,6% do crédito


bancário em 2020


Fabrício de Castro / BRASÍLIA


O Banco Central alterou ontem
de 4,8% para 7,6% sua estimati-
va para o mercado de crédito
neste ano. Os números foram
divulgados no Relatório de Eco-
nomia Bancária (REB) e refle-
tem os impactos da pandemia
do novo coronavírus.
A projeção de crescimento do
crédito livre em 2020 passou de
8,2% para 10,6%. No caso dos
recursos direcionados (poupan-
ça e BNDES), a projeção foi de


zero para alta de 3,5%.
“Em especial, a aceleração de
concessões repercute, princi-
palmente, a busca por recursos
por parte de empresas em face à
redução dos fluxos de caixa”, re-
gistrou o BC.
As instituições financeiras es-
peram que o saldo de crédito pa-
ra as grandes empresas suba
2,8% em 2020, após retração de
8,5% registrada em 2019. No ca-
so das Micro, Pequenas e Mé-
dias Empresas (MPME), a proje-
ção das instituições é de alta de
5% do saldo de crédito este ano,
ante elevação de 5,6% em 2019.
Para combater os efeitos eco-
nômicos da pandemia nas em-
presas, o governo lançou três li-
nhas de crédito para pequenas e
médias companhias, que en-
frentam dificuldades para se fi-

nanciar e cumprir obrigações
como o pagamento da folha de
salários.
“Apesar de os efeitos dessa
crise ainda não serem visíveis
em sua totalidade sobre o mer-
cado de crédito nos primeiros
meses de 2020, espera-se im-
pacto significativo ao longo dos
próximos meses em virtude da
elevação de incertezas nos am-

bientes externo e doméstico,
que se traduzem em menor
perspectiva de crescimento eco-
nômico e elevação de prêmios
de risco”, acrescentou a institui-
ção.

Concentração. As cinco maio-
res instituições financeiras do
Brasil – Banco do Brasil, Itaú
Unibanco, Bradesco, Caixa Eco-

nômica Federal e Santander –
concentram 80,7% das opera-
ções de crédito no País no seg-
mento bancário, conforme da-
dos divulgados ontem. Os nú-
meros referem-se ao mês de de-
zembro de 2019. Em 2018, o por-
centual era de 82,2%.
Essas cinco instituições con-
centram 79,2% dos ativos totais
e 82,3% dos depósitos. Em 2018,
os porcentuais eram de 79,5% e
82,8%, respectivamente.
No relatório, o BC avaliou
que os indicadores de concor-
rência mantiveram “tendência
de queda” iniciada em meados
de 2017, sinalizando um “am-
biente de aumento da competi-
ção bancária e redução de cus-
tos de crédito e de outros servi-
ços financeiros”.
Já a rentabilidade dos bancos
brasileiros subiu no ano passa-
do e o lucro das instituições fi-
nanceiras bateu novo recorde.
O chamado retorno sobre o pa-
trimônio líquido do sistema
bancário nacional alcançou
16,5% em dezembro do ano pas-
sado, contra 14,8% no fecha-
mento de 2018, e retornou a pa-
tamares registrados em 2011.

Vinicius Neder / RIO


Em meio às medidas para mi-
tigar a crise causada pela co-
vid-19, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômi-
co e Social (BNDES) aprovou
ontem a criação de uma linha
de crédito para financiar a ca-
deia de fornecedores de gran-
des empresas, que funciona-
rão como “âncoras” das ope-
rações. A linha terá orçamen-
to inicial de R$ 2 bilhões, e as
empresas do varejo deverão
ser as primeiras a tomar os
empréstimos, como mostrou
o Estadão/Broadcast no mês
passado.
Pelo modelo, que foi usado pe-
la primeira vez pelo BNDES nu-
ma operação com a rede O Boticá-
rio, em 2013, a empresa “âncora”
toma o empréstimo e repassa o
financiamento a seus fornecedo-
res, a maioria firmas de menor
porte. A linha é uma estratégia pa-
ra fazer o crédito chegar às mé-
dias, pequenas e microempresas,
justamente as que têm maior difi-
culdade de conseguir emprésti-


mos em momentos de crise.
Do ponto de vista das “empre-
sas-âncora”, a medida evita a
perda de fornecedores – man-
tendo o fôlego financeiro des-
sas empresas para quando a eco-
nomia reagir – e atua contra
atrasos de pagamentos ou de en-
tregas na cadeia. Do ponto de
vista dos fornecedores, é uma
oportunidade de conseguir fi-
nanciamentos em condições
vantajosas – como o tomador
do empréstimo é a grande em-
presa, que tem risco menor, os
juros tendem a ser menores. As
altas taxas dos bancos têm sido
citadas por pequenos empresá-
rios como uma das dificuldades
para enfrentar a crise.
Nesta nova fase do progra-
ma, as redes Renner e Marisa já
mantiveram contato com o BN-
DES, disse uma fonte que pediu
para não se identificar. Procura-
das, as empresas não confirma-
ram a intenção até o encerra-
mento desta edição.

Condições. Segundo o banco,
as condições da linha aprovada

ontem incluem prazo de até cin-
co anos para pagamento, com
carência de até dois anos, e ju-
ros que usam a taxa Selic (taxa
básica do Banco Central) como
referência, acrescidos de taxa
de 1,1% ao ano de remuneração
ao BNDES e mais uma taxa de
risco que varia conforme o “ra-
ting” da “empresa-âncora”. Na
prática, como a Selic está em 3%
ao ano, o juro final tende a ficar
abaixo dos 11,59% ao ano, média
verificada na linha BNDES
Crédito Pequenas Empresas,
conforme dados disponíveis no
site do banco de fomento.
Com orçamento ampliado
em R$ 5 bilhões para ajudar as
empresas em meio à pandemia,
a BNDES Crédito Pequenas Em-
presas é uma linha indireta, ou
seja, o banco de fomento passa
os recursos a bancos comer-
ciais, que fecham o empréstimo
com os clientes finais. Como os
bancos comerciais cobram por
seus serviços, o juro final para o
empresário fica mais alto.
No caso da nova linha, a ope-
ração será feita diretamente

com a “empresa-âncora”, que fi-
ca, então, responsável por fir-
mar contratos de financiamen-
to com seus fornecedores e fa-
zer o repasse – assim como fica
responsável por devolver os em-
préstimos ao BNDES, à medida
que forem sendo pagos.
Pelas regras do BNDES, só po-
dem ser “empresas-âncora” as
companhias com faturamento
anual acima de R$ 300 milhões.
Outra condição da nova linha é
que cada empréstimo deve ser
de, no mínimo, R$ 10 milhões e,
no máximo, de R$ 200 milhões.
Assim, o orçamento inicial de
R$ 2 bilhões cobriria dez opera-
ções no valor máximo, mas o
BNDES informou que o total
disponível poderá ser ampliado
em caso de maior demanda.

O BNDES também confir-
mou que a criação da linha se dá
em paralelo às ações voltadas
para socorrer os setores mais
atingidos pela crise, que envol-
vem sindicatos de bancos coor-
denados pela instituição de fo-
mento. Nesse caso, os setores
elétrico e aéreo estão com as li-
nhas de apoio mais avançadas.

O setor de varejo, que tem em-
presas abertas na Bolsa e está
entre os setores estudados pelo
sindicato de bancos, deverá se-
guir o modelo desenhado para
as companhias aéreas, baseado
em ofertas de títulos de dívida
no mercado.
Esse modelo não seria adequa-
do ao setor automotivo, forma-
do por subsidiárias de multina-
cionais que não costumam lan-
çar títulos no mercado financei-
ro brasileiro. Mas, caso o BN-
DES e os bancos privados che-
guem ao desenho de uma linha
de apoio para as montadoras, as
operações poderão ser comple-
mentares a eventual “crédito-ân-
cora” tomado por uma empresa
para financiar sua cadeia de for-
necedores, explicou o BNDES.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


‘Escalavrada’ é o adjetivo
que define a democracia
que vivemos no País hoje

lEm meio à crise econômica
provocada pelo novo coronaví-
rus, as famílias brasileiras fize-
ram mais depósitos do que sa-
ques na caderneta de poupança
em maio. Dados do Banco Cen-
tral mostram que os depósitos
líquidos somaram R$ 37,2 bi-
lhões. Esse é o maior volume de
depósitos em um único mês em
toda a série histórica do BC, ini-
ciada em janeiro de 1995.
Maio também foi o 3º mês se-
guido em que houve registro de
depósitos. Em março, quando a
pandemia fez com que o isola-
mento social se intensificasse,
com reflexos sobre a atividade
econômica, as famílias já haviam
depositado R$ 12,2 bilhões. Em
abril, foram R$ 30,5 bilhões. Es-
sa corrida para a caderneta é jus-
tificada pela postura das famílias
em relação à crise e pelas ações
do governo para manter a renda
da população./F.C.

lParcela

Maia atrela um novo Refis à discussão de reforma tributária. Pág. B5 }


Ajuda. Governo lançou três pacotes de crédito para MPME

Custo. Novo modelo de financiamento terá juros inferiores aos praticados hoje pelo BNDES

BNDES aprova


R$ 2 bi em socorro


a fornecedores


Nova linha de crédito vai eleger empresas ‘âncoras’, que ficarão


responsáveis por repasse de recursos a seus parceiros comerciais


Poupança tem


captação recorde


NACHO DOCE/REUTERS

R$ 10 mi
será o valor mínimo de cada ope-
ração do BNDES por meio da no-
va linha de crédito, que tem o ob-
jetivo de financiar a operação de
pequenas e médias empresas
em meio à crise da covid-19.

TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO
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