O Estado de São Paulo (2020-06-08)

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H2 Especial SEGUNDA-FEIRA, 8 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


SONIA RACY


DIRETO DA FONTE


Colaboração
Cecília Ramos [email protected]
Marcela Paes [email protected]

Para Walter Fanganiello
Maierovitch, o STF, nesta
quarta-feira, deve se fechar
como uma corporação. “As
“11 ilhas” vão decidir por
unanimidade” a continua-
ção do inquérito das fake
news no Supremo. “Mas is-
so não é democrático, eles
têm um compromisso com
a Constituição. Vão ter de fa-
zer um “contorcionismo ju-
rídico”, porque o conteúdo
da investigação é bom e arra-
sador,” atestou o jurista, se-
mana passada, em entrevis-
ta à coluna e à Band, emen-
dando: “O (Augusto) Aras
não pode pedir para jogar tu-
do no lixo”.

O que espanta hoje, no País,
em sua opinião, “é a demora
em levar adiante” os moti-
vos conhecidos – crimes de
responsabilidade – para arti-
cular a saída de Jair Bolsona-
ro da Presidência. Exem-
plos: circular sem máscara e
provocar aglomerações (in-
duzindo outros cidadãos a
risco de morte), fazer advo-
cacia administrativa (inter-
ferência direta em favor pró-
prio) na PF no Rio, criação
de sistema pessoal de infor-
mações, atitudes em favor
do armamento de milícias.
Mairovitch vê o presidente
como vítima de si mesmo:
“Cada vez que ele abre a bo-
ca dá um tiro no pé”.

Um dos instrumentos à
mão, destaca, é o art. 268 do
Código Penal, que pune cla-
ramente “o descumprimen-
to de determinação do po-
der público”, seja resistir ao
isolamento, seja em dizer –
por enquanto, – que “vai in-
terferir” e que não se subme-
terá às decisões do STF.

Maierovitch engrossa as filei-
ras de um grupo onde já es-
tão FHC, que sugeriu a renún-
cia do presidente, e Miguel
Reale Jr., que defende tirá-lo
por motivos de saúde – no ca-
so, falta de sanidade mental.
A seguir, os principais tre-
chos da entrevista:

lNestes tempos confusos,
com pandemia ainda se expan-
dindo e economia fraca, há
quem defenda impeachment
de Bolsonaro? O que acha?
Há motivos suficientes e me
espanta o atraso em levá-los
adiante. Temos todos os
dias violações do Código Pe-
nal. E já que se fala em aber-
tura durante a pandemia, ca-
be lembrar que o art. 268
desse Código menciona,
com toda clareza, o descum-
primento de determinação
do poder público (no caso, a
resistência ao isolamento so-
cial). Determinação que po-
de ser do governo federal,
estadual ou até da Organiza-
ção Mundial da Saúde. Bol-
sonaro descumpre isso to-
dos os dias facilitando a pro-
pagação do vírus.

lO País tem assistido a forte de-
bate entre Bolsonaro e STF so-
bre os limites reais de cada po-
der. O que pensa dessa polêmi-
ca?
A Constituinte adotou, em
1988, a famosa “tripartição fun-
damental dos poderes”, criada
pelo francês Montesquieu – o
chamado sistema de freios e
contrapesos. Ele diz que cada
um dos três Poderes tem sua
independência mas ao mesmo
tempo cria mecanismos para
um controlar o outro, tudo
dentro da Constituição. Ou se-
ja, o presidente não é “o chefe
dos chefes”, como apregoa Bol-
sonaro, é um poder entre três,
com a função executiva, e ca-
be-lhe entender-se com o Le-
gislativo e o Judiciário.

lSe eles se desentendem, como
é que fica?
Há um poder que existe justa-
mente para solucionar os dis-
sensos, os litígios, as interpre-
tações: o Judiciário, cujo órgão
máximo é o STF. Quando há
um desencontro, é ele quem
dá a última palavra.

lMuitos juristas acham que o
Supremo está muito enfraqueci-
do, em termos de imagem. Fala-
se que o Brasil tem hoje “onze
Supremos”, os onze ministros.
Como se chegou a isso?
O pior é que temos uma legisla-
ção, a Lei Orgânica da Magis-
tratura, que disciplina ativida-
des, direitos e deveres dos ma-
gistrados e um deles é que o
juiz só deve falar nos autos.
Outro, que não pode criticar
um colega por uma decisão. E
ainda, que não pode antecipar

seu julgamento. Mas o que ve-
mos no País, hoje, é exatamen-
te o contrário.

lSe o Supremo ignora as nor-
mas, quem poderia fiscalizá-lo?
Existe um mecanismo de puni-
ção, que pode levar até ao im-
peachment, mas há nele uma fa-
lha. O falecido jurista Márcio
Thomaz Bastos vendeu a ideia
de que haveria um órgão, um
Conselho Nacional de Justiça,
que seria o disciplinador de con-
dutas inadequadas. Mas o CNJ
foi colocado, na Constituição,
abaixo do Supremo. Se está abai-
xo, o Supremo entendeu que es-
te conselho não
tem qualquer po-
der perante seus
ministros.

lComo funciona o
CNJ?
Quem o preside é o presidente
do STF. Ele acabou não sendo
um órgão de controle externo,
da sociedade sobre o poder. A
maioria de seus conselheiros é
de magistrados, e assim ele se tor-
nou um conselho corporativo.

lO País tem assistido à grande
bagunça sobre os limites legais,
sobre quem julga e decide – co-
mo no caso das fake news, em
que alguns entenderam que o
próprio Supremo pode denun-
ciar, julgar e aplicar a sentença.
O que você acha?
Cabe lembrar aqui como foi
que isso evoluiu. Havia um sis-
tema inquisitorial, no passado,
em que a Igreja, quer dizer, o
inquisidor, colhia a prova, veri-
ficava e julgava. Hoje quem in-
vestiga é o Ministério Público,

tendo a polícia judiciária como
auxiliar. Ou seja, quem julga
(no final) tem que estar distan-
ciado do fato, para se estabele-
cer uma igualdade entre acusa-
dor e acusado. O acusador de
crimes é o MP e o juiz é um
agente imparcial.

lOnde entra, nisso tudo, aquela
discussão sobre o juiz de garan-
tias?
Exatamente aí. Ele vai atuar na
fase de processo, pra decidir
por exemplo se cabe decretar
prisão preventiva, um ato de
busca e apreensão. Essa discus-
são já surgiu no caso daquela in-
terceptação do
(então juiz Ser-
gio) Moro com os
procuradores em
Curitiba. O que se
fala é que ele se
imiscuiu com o ór-
gão acusador e que isso quebra
a neutralidade do processo.

lComo isso impacta o caso das
fake news?
Esse inquérito foi instituído
por portaria do presidente do
STF, ministro Dias Toffoli, ba-
seada no regimento da própria
corte, e voltada para eventuais
crimes ocorridos dentro do
próprio tribunal. Mas o artigo
em questão apenas autoriza
um inquérito, não admite que
o Supremo o instaure. No caso
das fake news, o que tivemos?
Um trabalho de apuração reali-
zado pelo próprio Supremo,
com delegados à sua disposi-
ção, e que fizeram um trabalho
muito bom. E para onde ele
aponta? Ele identifica milícias,
temáticas e virtuais, que difa-

mam, caluniam, e principal-
mente ameaçam com fake
news, notícias falsas.

lOnde isso vai dar?
Nesta quarta-feira, dia 10, o Su-
premo deve decidir o que fazer
com esse inquérito. O procura-
dor (Augusto) Aras, que tem
se mostrado mais um defensor
do presidente da República do
que defensor da sociedade, mu-
dou sua posição e pediu o tran-
camento do processo. Quer di-
zer, pretende jogar na gaveta.
No lixo. Com isso dará uma de-
claração de impunidade a vá-
rios envolvidos já identifica-
dos. O que se diz, pelo corredo-
res das cortes, é que lá tem to-
da uma movimentação de em-
presários que financiam esses
grupos e as fake news. Já chega-
ram às mãos de Rodrigo Maia,
na Câmara, mais de 30 pedidos
de impeachment. Nenhum
avançou. Ele alega que em tem-
po de pandemia não é hora de
debater impeachment porque
não tem como fazer as sessões
presenciais.

lHá quem tenha certeza de que
o Brasil não aguenta mais um
impeachment. A saída seria a
renúncia, como defende FHC? Ou
deve adotar sugestão do jurista
Reale Jr, de impedimento por in-
sanidade mental?
Bem, o FHC fez um juízo políti-
co, que é adequado a pedidos
desse tipo. E o mesmo fez o Ro-
drigo Maia, que, apesar da re-
jeição do Bolsonaro chegando
a 70%, não acha oportuno le-
var o impeachment adiante no
momento. A renúncia é um
ato unilateral, no qual vamos

sempre depender do presi-
dente. Considerar a pessoa
insana precisa do MPF. De
início, Bolsonaro seria julga-
do em primeiro grau, não no
Supremo. O MP verifica se
ele goza ou não das faculda-
des mentais, o que depende
de laudos psiquiátricos. Não
basta dizer que ele atua de
modo destemperado, que
confunde as coisas. É um ca-
minho difícil, complicado.

lE o caminho de possível cri-
me de responsabilidade?
Nesse caso ficamos na de-
pendência do procurador-
geral, de autorização da Câ-
mara para que o STF possa
apreciar. A PGR cabe obser-
var que o presidente está to-
dos os dias sem máscara,
juntando gente, pondo em
risco outras pessoas com re-
lação ao coronavírus. Pode-
se também enquadrar no cri-
me de advocacia administra-
tiva, fruto daquela briga
com o Moro que resultou
no inquérito sobre atos do
presidente iniciado pelo mi-
nistro Celso de Mello. Se
chegar a isso, o presidente é
afastado por 180 dias, prazo
para a corte julgar.

lComo imagina esse julga-
mento?
Imagino um processo com
ampla defesa e provas, e fica
evidente, no caso, que o pre-
sidente na realidade é uma
vítima de si mesmo. Aliás,
cada vez que abre ele a boca
dá um tiro no pé. Hoje, na
hora em que a água já está
na altura do nariz, ele vem e
diz que pensa em dar uma
cadeira no STF para o procu-
rador-geral Aras. Em artigo
que mandei para o Estadão,
usei a expressão “mercador
de toga”. E veja só: usar as
coisas para trocar, barga-
nhar, caracteriza crime de
responsabilidade. E tem ain-
da essa fixação de distribuir
armas à população – e olhe
que ele já tem uma milícia
armada, aqueles que acam-
pam em Brasília.

lO que pode acontecer no dia
10?
O STF deve se fechar como
uma corporação. As “11
ilhas” vão decidir por unani-
midade. Mas isso não é de-
mocrático, eles têm um com-
promisso com a Constitui-
ção. Portanto, vão ter de fa-
zer um “contorcionismo ju-
rídico”, porque o conteúdo
da investigação, como já dis-
se, é bom e arrasador. O que
não pode é, como quer o
Aras, jogar tudo no lixo. E
quero mencionar que, no epi-
sódio envolvendo Moro, an-
tes de enviar o processo
adiante o ministro Celso de
Mello vai desmembrar e re-
meter a parte relativa ao ex-
juiz para a primeira instân-
cia. Afinal, Moro não tem
mais função pública nem fo-
ro privilegiado.

‘Cada vez que ele abre a boca dá um tiro no pé’


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MILTON MICHIDA/AGÊNCIA ESTADO

Jurista cita o presidente Bolsonaro em violações à Constituição e ao Código Penal


Encontros WALTER MAIEROVITCH


‘SEMPRE QUE HÁ
DESENCONTRO,
O STF É QUEM DÁ A
ÚLTIMA PALAVRA’
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