O Estado de São Paulo (2020-06-14)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 14 DE JUNHO DE 2020 Especial H9


Aliás,


Sérgio Augusto
ESPECIAL PARA O ESTADO


Existem no mundo 34 cidades cha-
madas Bristol, nenhuma delas
mais antiga, conhecida e com mais
histórias do que a do sudoeste da
Inglaterra. Até o último fim de se-
mana, Bristol se notabilizara por
sua importância estratégica no
tráfico internacional de escravos e
por ser a cidade natal do pirata Bar-
ba Negra, do Nobel de Física Paul
Dirac, do ator Cary Grant e do artis-
ta de rua Bansky. Faz sete dias que
ela se tornou, acima de tudo, a no-
va capital mundial da iconoclastia,
a Bizâncio do novo milênio.
Milhões de olhos assistiram ao
vivo, domingo passado, à derruba-
da da estátua do patriarca de Bris-
tol, Edward Colston (1636-1721),
por uma multidão mais folgazã
que enfurecida. Por 125 anos na-
quela praça, ao relento e na mira
de titicas aladas, a estátua era um
constrangimento geral. Derrubá-
la e em seguida jogá-la ao mar não
foi um ato de vandalismo, mas de
purificação urbanística e revisio-
nismo histórico, afetuosamente
aceito pelo prefeito da cidade, Mar-
vin Rees, de origem jamaicana. Ha-
via mais de três décadas que a está-
tua estava jurada de remoção. A re-
volta mundial contra o racismo de-
sencadeada pelo assassinato de
George Floyd apenas a precipitou.
“Nunca houve um monumento
da cultura que não fosse também
um monumento da barbárie”, es-
creveu Walter Benjamin. Erguidas
quase sempre com recursos do erá-
rio, estátuas como a do bárbaro
Colston não são propriedades pri-
vadas, mas patrimônio público so-
bre o qual todos têm os mesmos
direitos de propriedade e usufru-
to, inclusive o de querer e tentar
derrubá-las.
Como alto oficial da Royal Afri-
can Company, Colston fez fortu-
na traficando e trucidando milha-
res de escravos entre o continente
africano e o Caribe, no século 17.
Sua estátua não era um marco his-
tórico, mas um totem glorificante,
a celebrar o horror escravagista. A
placa que lhe anexaram rassaltava
apenas as virtudes e ações filan-


trópicas do homenageado, de res-
to financiadas com o dinheiro sujo
do tráfico negreiro porém negadas
a quem discordasse de suas ideias
religiosas e políticas. O ritual ico-
noclástico em Bristol provocou,
de imediato, duas ondas: uma de
polêmicas na imprensa e nas mí-
dias digitais, outra de vandaliza-

ções de monumentos que há mui-
to deveriam ter sido recolhidos a
museus dedicados à preservação
crítica do passado, e não exibidos a
céu aberto como objetos de culto e
adorno paisagístico de gosto qua-
se sempre duvidoso. História não
se aprende apreciando e tirando fo-
tos ao lado de esculturas e memo-

riais, mas lendo e estudando ou ou-
vindo quem a conhece bem. “Está-
tuas não são gente”, argumentou
um professor de história. “O que é
a destruição de um monumento
se comparada à exploração, ao so-
frimento e ao morticínio dos mais
de 100 mil escravos negociados pe-
la Royal African Company entre

1672 e 1689?”, perguntou outro. Es-
sa é uma discussão espinhosa, que,
mesmo circunscrita à escravidão,
pode nos levar até às pirâmides do
Egito e à estatuária greco-romana


  • sem poupar ninguém. A onda de
    bota-abaixos que se seguiu ao
    “mergulho” de Colston nas águas
    de Bristol desmoronou, em Lon-
    dres, a estátua do armador e co-
    merciante de escravos escocês Ro-
    bert Milligan, e a do genocida rei
    belga Leopoldo 2º, na Antuérpia.
    Cecil Rhodes, sumo artífice do co-
    lonialismo britânico na África, es-
    tá com todas as suas estátuas no
    Reino Unido pela bola sete.
    Do outro lado do Atlântico que
    Colston e assemelhados cruza-
    vam, atirando aos peixes os escra-
    vos mortos ou adoecidos durante
    a travessia, os antirracistas em per-
    manente vigília cívica partiram
    atrás de seus mais visados vilões
    históricos – de Cristóvão Colom-
    bo, o iniciador da barbárie, aos ge-
    nerais e capitães do mato confede-
    rados, liderados por Robert E. Lee.
    Colombo já teve a estátua que lhe
    erigiram em Richmond (Virginia)
    despejada no lago mais próximo e


a cabeça de outra decapitada em
Boston. Expurgar o general Lee
da paisagem sulista vai dar um tra-
balhão. Tentei contar os tributos
que em mármore e metal lhe fize-
ram nos Estados do Sul. Desisti
no meio. Ao sabor das primeiras
reações ao patético fim do Cols-
ton de bronze, internautas brasi-
leiros começaram a elaborar lis-
tas de escravocratas de nossa his-
tória para uma eventual faxina ico-
noclástica.
O primeiro que vi, no Twitter, es-
calou o gaúcho Bento Gonçalves,
homenageado pelos pampas afora
e até nome de cidade. A segunda
indicação viralizou com mais in-
tensidade ainda, pois raras figuras
de nosso passado são mais abomi-
nadas que o paulistano Borba Ga-
to, genro de Fernão Dias Paes, o
Caçador de Esmeraldas, bandei-
rantes com centenas de negros e
índios mortos nas costas. Fernão
Dias tem estátuas em várias locali-
dades de Minas Gerais e até uma
rodovia com seu nome. Borba Ga-
to ganhou uma estátua em Santo
Amaro que, de tão medonha, se-
quer merecia mofar no porão de
um museu.
Assassino indultado com o pos-
to de tenente-general do mato por-
que sabia onde havia ouro nas ma-
tas de São Paulo e Mato Grosso,
Borba Gato era um corrupto das
botinas ao penacho. Distribuiu
permissões de minas e lavras a pa-
rentes e amigos. Se não tivesse
morrido no século 18, poderia ser
ministro das Minas e Energia do
governo Bolsonaro. João Rama-
lho, o Patriarca dos Bandeirantes;
Baltasar Fernandes, fundador de
Sorocaba; Gaspar Vaz Guedes, o
guardião de Mogi das Cruzes, tam-
bém foram lembrados.
Aliás, praticamente todos os
bandeirantes e alferes que se desta-
caram na exploração, perseguição
e massacre de negros e indígenas
entraram, com suas estátuas, na lis-
ta de sugestões – sem exclusão de
duas estrelas do panteão de heróis
nacionais: Tiradentes, que tinha
seis escravos quando o enforca-
ram, e Duque de Caxias, cuja atua-
ção contra escravos, alforriados,
quilombolas e outras classes explo-
radas pela casa-grande, no Mara-
nhão da Balaiada, tisnou à beça sua
fama de “pacificador”.

Itamar Montalvão


Setembro de 1919. A 1ª Guerra
terminara havia pouco menos
de um ano quando Adolf Hitler,
então aos 30 anos de idade, escre-
veu uma carta a um colega de far-
da. Nesse documento histórico,
referiu-se aos judeus como uma
“tuberculose racial”, uma “raça
estrangeira” que desfrutava dos
mesmos direitos dos alemães,
porém sem “abrir mão de suas
características”. Tudo o que um
judeu fazia, escreveu Hitler, não
tinha outro propósito a não ser
“alimentar sua cobiça por dinhei-
ro e poder”. Àquela altura, Hitler
não era nada além de um medío-
cre cabo do exército alemão. Pa-
ra desgraça do mundo civiliza-
do, no entanto, seus dias de obs-
curidade logo ficariam para trás.
Impregnado naquele papel esta-
va a alma de um homem carcomi-
do pelo ódio e por um profundo
ressentimento pela acachapan-
te derrota da Alemanha.
Mais de uma década antes de
ascender ao poder, Hitler já so-
prava as brasas de sua implacá-
vel sanha persecutória, a sede de
vingança que prenunciava o hor-
ror sem precedentes que estava
por vir. Diagnosticada por ele a
raiz de todos os males da Alema-
nha, os judeus, bastava um “anti-
biótico” para erradicar a “tuber-
culose”. A partir de 1942, passa-
ria a ser administrado em escala
industrial e ficaria tristemente
conhecido como a “Solução Fi-
nal da Questão Judaica Euro-
peia”: o Holocausto, a catástrofe
(shoah, em hebraico) que dizi-


mou 6 milhões de judeus.
Muito já foi escrito sobre o Ho-
locausto. Todos os anos, deze-
nas de livros sobre o tema são
lançados, tanto de ficção como
de não ficção. E é bom que seja
assim. Quanto mais o genocídio
dos judeus for lembrado e conhe-
cido pelas novas gerações, me-
lhor. No entanto, passadas qua-
se oito décadas da hedionda ex-
periência, escassa é a literatura
sobre a construção da memória
que hoje se tem do Holocausto,
sejam as memórias dos próprios
sobreviventes, seja a visão que o
mundo passou a ter do maior cri-
me contra a humanidade já co-
metido. É fundamental notar
que aqui não se trata da literatu-
ra memorialista do Holocausto,
gênero profícuo que teve o italia-
no Primo Levi e o romeno Elie
Wiesel, ambos sobreviventes
dos campos da morte (Aus-
chwitz e Buchenwald), como
duas de suas penas mais eloquen-
tes. Trata-se de um olhar arguto

sobre os meandros psíquicos, so-
ciais, intelectuais – e até morais


  • que fizeram o Holocausto ser o
    que é hoje, tanto para os que so-
    breviveram à barbárie nos cam-
    pos e guetos contra todas as pro-
    babilidades, como para todos os
    outros, aos
    quais jamais
    será dado com-
    preender em
    sua inteireza o
    que foi, de fa-
    to, o mal ino-
    minável.
    É precisa-
    mente esta lacuna que o jornalis-
    ta e historiador Marcos Guter-
    man preenche com seu novo li-
    vro, Holocausto e Memória (Ed.
    Contexto), escrito em homena-
    gem a seus avós maternos, Szaja
    e Chaja Wajskopf, ambos sobre-
    viventes dos campos de Dachau
    e Auschwitz. Se é impossível atri-
    buir um sentido ao Holocausto,
    e a partir disso tentar entender
    uma miríade de questões que


cercam a catástrofe há tanto tem-
po, o livro é uma leitura indispen-
sável para compreendermos a ra-
zão dessa impossibilidade, so-
bretudo porque os campos e gue-
tos, como bem pontua o autor,
foram instalações concebidas
exatamente pa-
ra pulverizar
intramuros
qualquer vestí-
gio de humani-
dade e moral vi-
gentes no
“mundo exte-
rior”. Naquele
inferno, onde até o léxico era par-
ticular e as noções de algoz e víti-
ma não raro foram subvertidas –
basta lembrar dos kapos, nos
guetos, e dos Sonderkomman-
dos, nos campos nazistas –, o im-
pério da amoralidade impedia a
compreensão do que lá se passa-
va com base em códigos conheci-
dos pelas vítimas até seu embar-
que nos trens fantasmas.
Holocausto e Memória é dividi-

do em duas partes. Na primeira,
Guterman trata das memórias
do Holocausto sob a perspectiva
de seus sobreviventes. O leitor é
guiado por um labirinto de possi-
bilidades que revela como o pro-
cesso de construção da memó-
ria que cada um dos sobreviven-
tes tem dos horrores que sofreu
e presenciou seja absolutamen-
te único. Prisioneiros de um mes-
mo campo ou gueto podem ter
passado por suplícios idênticos,
mas sempre trazem marcas dis-
tintas na alma. O que relatam,
portanto, pode ser apenas um
fragmento de suas vivências ou
mesmo um amálgama entre es-
tas e as de outras pessoas, que
sequer verdadeiras – do ponto
de vista factual – podem ser. Pa-
ra outros sobreviventes não há
sequer o que relatar, explica o au-
tor. O silêncio é o único meio
possível de lidar, no presente,
com um passado que não cabe
nos limites da linguagem. De
uma hora para outra, milhões fo-

ram arrancados não só do mun-
do conhecido, mas de sua pró-
pria identidade. Como falar ra-
cionalmente sobre isso? Não
por acaso, há sobreviventes que
atribuem uma dimensão místi-
ca ao Holocausto, remetendo à
origem grega do termo, a “oferta
de sacrifício a Deus pelo fogo”.
Na segunda parte da obra, Gu-
terman aborda o processo de
construção da memória que o
mundo tem do Holocausto.
Aqui, o papel da arte é central,
em especial o cinema. O autor
analisa alguns dos filmes e docu-
mentários produzidos sobre o te-
ma, partindo do problema da
simplificação. Para apresentar a
catástrofe ao público de massa, a
narrativa cinematográfica não
raro a reduziu à luta do bem con-
tra o mal, o que não dá conta de
explicar as contradições delibe-
radamente provocadas pelos na-
zistas. Guterman lembra o ci-
neasta francês Claude Lanz-
mann, diretor do documentário
Shoah (1985), para quem era im-
possível representar artistica-
mente o Holocausto.
A importância de Holocausto e
Memória vai além de sua aborda-
gem inédita de um aspecto inex-
plorado da catástrofe, o proces-
so de construção da memória.
Pode não ter sido a intenção do
autor, mas o livro chega aos leito-
res no momento em que autori-
dades no Brasil não se envergo-
nham por explorar politicamen-
te os horrores do Holocausto, es-
tabelecendo falsas simetrias e,
assim, impingindo às verdadei-
ras vítimas uma nova pena, a rela-
tivização de seu sofrimento.

PARA APRESENTAR A
CATÁSTROFE ÀS MASSAS,
O CINEMA A REDUZIU À
LUTA ENTRE BEM E MAL

ESTÁTUAS DERRUBADAS


INDICAM ALGO MAIOR


QUEDA


Cultura*


Esperança. Grupo de crianças sobreviventes do Holocausto durante a libertação do campo de extermínio de Auschwitz

A MEMÓRIA DO GENOCÍDIO DOS JUDEUS


BEN BIRCHALL/AP

Antirracismo. Manifestantes de Bristol derrubam e lançam em um rio a estátua do traficante de escravos Edward Colston

ALEXANDER VORONTSOV - 27/01/1945

HOLOCAUSTO
E MEMÓRIA
Autor:
Marcos
Guterman
Editora:
Contexto
240 páginas
R$ 59,90
R$ 39,90 em
e-book

Destruição do monumento ao traficante de escravos inglês


Edward Colston em Bristol é um marco da iconoclastia


Novo livro do historiador


Marcos Guterman diz


como sobreviventes e a


arte ajudaram a explicar


a tragédia do Holocausto

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