Crusoé - Edição 112 (2020-06-19)

(Antfer) #1

temos visto a desigualdade crescendo
em várias democracias. Isso cria uma
polarização política e arranha a
legitimidade das instituições. As novas
tecnologias, por sua vez, afetam as
corporações tradicionais e diminuem
as lojas físicas. Todos esses
movimentos ganharam velocidade.
Em 2011, escrevi sobre o conceito de
G-Zero no livro Cada nação por si:
perdedores e ganhadores em um
mundo sem lideranças. Essa ideia de
um vácuo de poder tem se se
expandido de forma profunda e ampla
durante a crise.


Os confrontos desta semana que
deixaram ao menos vinte soldados
mortos na fronteira entre a China
e Índia têm alguma relação com a
Covid-19?
A pandemia deixou o presidente
chinês Xi Jinping mais inseguro. Ele,
que já estava preocupado com um
possível confronto com os Estados
Unidos, passou a temer uma reação
por não ter atuado corretamente
quando surgiram os primeiros casos
de coronavírus. Como resposta,
tornou-se mais nacionalista. Isso pode
ser atestado na repressão a Hong
Kong e no envio de soldados para a
fronteira com a Índia. Xi Jinping não
quer uma guerra. A Índia também não.
O problema é que, com Xi Jinping
assumindo uma postura agressiva,
uma confrontação fica mais provável.
É algo perigoso, porque tanto Xi
Jinping como o indiano Narendra
Modi estão sendo pressionados pela
população em seus países. Xi Jinping
não vive em um país democrático e
não busca a reeleição. Apesar disso,
mesmo em um regime autoritário o
líder deseja ser querido pela
população. É importante que os
cidadãos achem que ele está fazendo
um bom trabalho. E, francamente, Xi


Jinping está passando por uma fase
muito difícil neste momento.

Ao ficar mais agressiva, a China
ganhará mais influência no
mundo?
A China pode aumentar seu
prestígio junto a países pobres.
Quando se olha para as nações que
fazem parte da Nova Rota da Seda
(Belt and Road Initiative, um projeto
de infraestrutura e investimentos em
dezenas de países), podemos
constatar que a China construiu uma
relação forte com elas por meio do
comércio. Os chineses também são
os seus maiores credores. Cerca de
80% da dívida externa dos países da
África subsaariana é com Pequim.
Então acredito que a China terá um
papel maior no sudeste da Ásia, na
África subsaariana, no sul e leste da
Europa e na América Latina.

E a relação entre a China e os
países ricos?
Há um antagonismo crescente
com as nações desenvolvidas, o que
certamente não é bom para os
chineses. Eles já perderam muita
influência nos Estados Unidos. As
disputas tecnológicas e o desejo de os
americanos tirarem suas fábricas da
China podem levar outros países
desenvolvidos a seguir o exemplo.
Grandes empresas de
telecomunicações canadenses
optaram por empresas europeias,
como a Ericsson e a Nokia, para
construírem suas redes de telefonia
5G, desprezando a chinesa Huawei.
O Reino Unido deve seguir na mesma
linha. A Austrália também está em uma
briga forte com a China, porque o
governo apoiou uma investigação
independente sobre o acobertamento
da pandemia em Wuhan.

O poderio americano está
definhando?
Não estamos em um mundo
dominado pelos Estados Unidos. Há
mais unilateralismo. Mas o país tem
bancos muito mais sólidos que os
europeus. Por causa disso, uma crise
nos mercados emergentes afetaria
muito mais as instituições financeiras
europeias do que as americanas. Os
Estados Unidos também têm a moeda
de reserva do mundo. Em uma crise,
ninguém sai comprando euro, iene ou
libra esterlina. Todos preferem o dólar.
Os Estados Unidos exportam energia
e comida, o que os torna ainda mais
poderosos. É claro que o presidente
Donald Trump tem uma relação
pessoal ruim com líderes de países
aliados. O francês Emmanuel Macron,
a alemã Angela Merkel e o canadense
Justin Trudeau não gostam muito dele.
Mas o alinhamento que esses países
mantêm com os Estados Unidos ainda
é muito vigoroso. Os Estados Unidos
podem ter perdido muito soft power,
mas o seu hard power, quando
comparado com o de outros países,
tem crescido de forma assimétrica.

A pandemia levou os governos
a gastar mais, a contrair dívidas e
a dizer o que as pessoas podem ou
não dizer e fazer. Teremos estados
mais fortes no futuro?
O papel dos governos irá crescer.
Muitas pessoas estão sentindo que o
contrato social não funciona mais para
elas. Como as empresas não precisam
empregar mais gente para ganhar
produtividade, o desemprego
estrutural irá avançar. Então haverá
uma demanda maior em termos de
redistribuição da riqueza, de
investimentos do governo e de
intervenções estatais na economia. As
empresas serão cobradas para serem
mais patrióticas, reduzindo a
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