O Estado de São Paulo (2020-06-21)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 21 DE JUNHO DE 2020 Especial H9


Aliás,


Faustino da Rocha Rodrigues ]


A apropriação de relatos co-
muns para a documentação his-
tórica oficial é algo relativamen-
te novo. São ainda mais raros
quando em primeira pessoa.
Normalmente, dedicávamos
maiores credenciais aos trata-
dos diplomáticos, discursos, car-
tas institucionais e instrumen-
tos similares, tendo em vista a
associação à objetividade. As-
sim, deixávamos de lado expe-
riências pessoais e, consequen-
temente, impressões que pode-
riam incrementar, e muito, nos-
so conhecimento sobre a Histó-
ria. A Chão Editora, com a publi-
cação dos livros de memórias
Dias Ensolarados no Paraizo , de
Brazilia Oliveira de Lacerda, e
Páginas de Recordações , de Flori-
za Barboza Ferraz, contribui pa-
ra preencher essa lacuna.
O trabalho editorial da Chão
Editora é precioso. Segue uma
proposta de publicação de tex-
tos do Brasil do final do século 19
e princípio do 20, enriquecendo
a leitura sobre nossa história ao
tirá-los do esquecimento. Brin-
da-nos com a construção de um
rico catálogo a constar obras co-
mo Jovita Alves Noronha: Voluntá-
ria da Pátria, Diálogos Makii de
Francisco Alves de Souza, Fantina:
Cenas da Escravidão e O 15 de No-
vembro e a Queda da Monarquia
.
Em todos eles, romances, rela-
tos, memórias, sempre há um
posfácio estudiosos da temáti-
ca. Para as edições de Dias Ensola-
rados no Paraizo e “Páginas de Re-
cordações
, somos contemplados,
respectivamente, com ensaios
de Jorge Caldeira e Marina de
Mello e Souza.
Brazilia e Floriza escreveram
sem a pretensão de comporem
discursos oficiais de seu tempo.
Em Páginas de Recordações , con-
cebido quando a autora já conta-
va 73 anos, em meados do século
20, há o anseio de quem desejava
apenas “desabafar o coração”.
Definitivamente, isso consente
uma percepção diferenciada,
tanto em termos históricos,
quanto literários. Em ambos os
livros notamos um caráter forte-
mente descritivo. Cada qual
com suas particularidades. As
memórias estão em primeira
pessoa. Em termos históricos,
exige que nos posicionemos qua-
se que como ouvintes das im-
pressões de duas mulheres per-
tencentes à elite cafeicultora
paulista, contadas como em um
encontro à luz do abajur de um
casarão. Portanto, é como se fôs-
semos muito além da descrição
pura e simples da construção de
uma fazenda ou da organização
urbana de São Paulo, em sua fase
inicial. Com tais relatos, as auto-
ras possibilitam que experimen-
temos as expectativas, as decep-
ções, as glórias de alguns dos pro-
tagonistas da formação do Brasil
moderno, tal como as viveram.
Obviamente, para conhecer
mais sobre o País, durante esse
período, esses livros não bas-
tam. Contudo, a experiência de
se aproximar das impressões
dos cafeicultores, seus barões e
baronesas, é inigualável. Através
deles, conhecemos a maneira co-
mo lidavam com a mão de obra
escrava, bem como a decepção
com a proibição do cativeiro, a
conseguinte introdução do colo-
no estrangeiro, e a forma como
lidaram com essas transforma-
ções sociais. Também ficamos a
par do colossal trabalho para se
erguer uma fazenda, bem como
o tipo de relação dos fazendei-
ros com sua produção e o merca-
do de vendas e as oscilações dos
preços – Brazilia chega a porme-
norizar como participava na or-
ganização das contas do pai; Flo-
riza trabalha desde sempre no
pomar e nos cafezais, com plan-
tio, colheita e armazenamento.
A construção das casas de fazen-
da, seu significado na dinâmica
do dia a dia, pontuando o papel
feminino e, mais, a maneira co-
mo as próprias mulheres o com-
preendiam, por meio de suas vo-
zes, entre muitos outros aspec-
tos, despontam nas memórias.
Em termos literários, as dife-
renças são notáveis. Dias Ensola-
rados no Paraizo
sustenta uma
narrativa mais adocicada, nos-


tálgica e orgulhosa, ao se concen-
trar de 1893, quando Brazilia ti-
nha apenas seis anos, a 1906. Per-
passa infância e adolescência,
terminando com o seu casamen-
to com o homem pelo qual diz
ter sido sempre apaixonada.
O campo, neste caso, ocupa
papel primordial em sua educa-
ção. Ela não se apresenta como
vítima. Pelo contrário, vivencia
cada elemento patriarcal, subli-
nhando a relevância para a sua
vida. Seus estudos, sem qual-
quer desgosto ou mágoa, ocor-
rem totalmente no interior da ca-
sa, com professores e professo-
ras, brasileiros e estrangeiros.
Paraizo se bastava por si mesma.

A remissão à meninice em
uma fazenda de café, com perío-
dos de férias na casa da cidade
de São Paulo, pontua o entendi-
mento quanto ao lugar da mu-
lher. Ainda naturalmente despi-
do da consciência feminista evi-
dente na atualidade (diga-se de
passagem, essencial para os
nossos dias), mostra-nos uma
menina encantada com o mun-
do que a rodeia, formulando im-
pressões sempre saudosas, e
simpáticas, cativando o leitor.
Isso se torna ainda mais eviden-
te por meio da constante utili-
zação de adjetivos aliados à des-
crição pormenorizada dos am-
bientes em que vive.

Brazilia descreve o amor a
partir do casamento, fazen-
do-o com deferência, sem esbo-
çar qualquer intimidade. Che-
ga a criar um falso clímax por
nos haver deixado na expectati-
va da descrição das bodas, que-
brada com um simples, porém
forte, comentário: “Para mim
essa viagem de núpcias foi feliz
e interessante”. Ponto final.
No entanto, notamos uma coe-
rência com a maneira como
conduziu a escrita ao longo de
todo o livro, tendo em vista a
apresentação da meninice, dos
anos de formação da autora, na
fazenda Paraizo – que parecia
ter apenas dias ensolarados.

Embora em diversos momen-
tos atente para descrições minu-
ciosas da sociedade da época,
não o faz com a crítica evidente
no realismo de Machado de As-
sis ou Aluízio de Azevedo, já no-
tabilizados como autores. Não
há quaisquer indícios de ironia.
Pelo contrário, guarda admira-
ção, impondo-se com a vida no
campo, entoando o lugar cuida-
doso e privilegiado ocupado pe-
la classe social a que pertence. O
passado é re-
contado de
maneira sem-
pre positiva.
Conforme
enfatizado
por Jorge Cal-
deira, no posfá-
cio, os dados
pessoais de
Brazilia trans-
formam-se
em valores. Lo-
go, as impres-
sões desenvol-
vidas a partir
de descrições,
muitas vezes minuciosas, susci-
tam a nossa curiosidade quanto
à personalidade da própria auto-
ra. Brazilia é realmente isso que
nos apresenta? Era assim que ela
assimilava as coisas ao seu re-
dor? Eis a suspensão do leitor
que fecha o livro intrigado ante a
confissão.
Quando Floriza escreve Pági-
nas de Recordações a vida urbana

já havia se consolidado em nos-
so imaginário cultural. Desse
modo, o livro soa como um desa-
bafo. Resgata uma visão mais cui-
dadosa sobre o passado na fazen-
da, descrito a partir de uma roti-
na estafante, destarte o prazer
proporcionado pela natureza.
Mesmo no momento em que go-
zava do poder econômico da co-
mercialização do café, como as
viagens à Europa, por exemplo,
havia sempre um teor ético de
compromisso com o árduo tra-
balho aguardado na vida no cam-
po, como se dissesse que nada
daquilo veio de graça, sendo fru-
to de intensa dedicação.
No lamento de Floriza, o cam-
po aparenta uma permanente,
mas velada, competição com a
cidade. A cada linha tem-se a im-
pressão de alguém a falar para
um interlocutor imaginário es-
pecífico, predisposto a classifi-
ca-la como latifundiária que ape-
nas desfruta belezas ofertadas
pelo ambiente rural. Talvez por
isso a insistência em palavras co-
mo “luta”, “sacrifício”, “esfor-
ços”, entre outras análogas.
Simultaneamente, tampouco
há em Páginas de Recordações a
condenação do campo. Os senti-
mentos de Floriza se aparentam
mais à resignação, tendo em vis-
ta as circunstâncias que a levam
a sair de Piracicaba para o inte-
rior do estado. Apresenta distan-
ciamento maior dos adjetivos. E
apesar de o livro contemplar
praticamente toda a sua vida, in-
cluindo o casamento, não faz re-
ferência a Antoninho, seu mari-
do, de maneira afetiva. Ele é
apresentado mais como um
companheiro de jornada, o pai
de seus amados filhos.
O que notamos em ambas as
obras é a presença de um elemen-
to subjetivo marcante na compo-
sição das narrativas. Brazilia nos
apresenta a menina em uma
perspectiva idílica, apaixonada
por seu passado e comprometi-
da com ele por puro afeto. Flori-
za oferece o protagonismo femi-
nino no trabalho, não somente
da organização da casa – confor-
me nos acostumamos a ver com
Gilberto Freyre –, mas, igual-
mente, na lavoura e consequen-
te sucesso do café, descrito com
timidez. O comprometimento
com o passado, em Páginas de Re-
cordações está muito mais próxi-
mo de um elemento ético, mo-
ral. Em suas memórias, os dois
livros retratam o tradicionalis-
mo das famílias fazendeiras.
Tudo isso faz com que esteja-
mos diante de dois olhares com-
pletamente
distintos so-
bre a vida nas
fazendas de
café do final
do 19 e princí-
pio do 20. São
dois olhares
sobre a mes-
ma coisa. Os
relatos publi-
cados pela
Chão Editora
são fundamen-
tais para apa-
gar a tinta que
cobre os mati-
zes existentes nesse momento
da história do Brasil. Desmitifi-
ca o cafeicultor, a cafeicultora,
enquadrando-os como indiví-
duos comuns, orgulhosos de
seus passados.

]
É JORNALISTA, CIENTISTA SOCIAL E
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DE MINAS GERAIS

LIVROS DE MEMÓRIAS


REFAZEM BRASIL RURAL


ONTEM


Literatura*


Escritos por cafeicultoras do século 19, documentos


ajudam a entender a formação escravocrata do País


PÁGINAS DE
RECORDA-
ÇÕES
Autora:
Floriza
Barbosa
Ferraz
Editora:
Chão
288 páginas
R$ 59

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Invisíveis. Casal de trabalhadores na fazenda retratado por Rugendas (século 19) e ignorados pelos proprietários brancos

CONHECEMOS A
MANEIRA COMO ELAS
LIDAVAM COM A MÃO DE
OBRA ESCRAVA

OS DOIS LIVROS
RETRATAM O
TRADICIONALISMO DAS
FAMÍLIAS FAZENDEIRAS

DIAS ENSOLA-
RADOS NO
PARAIZO
Autora:
Brazilia de
Oliveira
Lacerda
Editora:
Chão
104 páginas
R$ 41
Free download pdf