Valor Econômico (2020-06-20, 21 e 22)

(Antfer) #1

JornalValor--- Página 12 da edição"22/06/2020 1a CAD A" ---- Impressapor LGerardi às 21/06/2020@18:46:5 1


A12|Valor| Sábado,domingoe segunda-feira, 20, 21 e 22 de junhode 2020

Especial


IMPACTOSDO


CORONAVÍRUS


PolíticaspúblicasDesigualdadevaiaumentarmaisse


‘geraçãocoronavírus’ficardesamparada,dizeconomista


Renda básica deve


ter crianças como


alvo, diz Naercio


NaercioMenezes Filho:geraçãodejovenspobresquecomeçaa trabalharagora podeterperdapermanentederenda

ANAPAULAPAIVA/VALOR

Anaïs Fernandes
De São Paulo

É consenso entreespecialistas
que oBrasil vai sair da pandemia
mais desigual que entrou em
muitos aspectos,seja no merca-
do de trabalho, seja na renda,se-
janaeducação.Umdeles,porém,
preocupaparticularmente oeco-
nomistaNaercio MenezesFilho,
professordo Insper:oaumento
da desigualdadeno desenvolvi-
mentoinfantil, difícil de ser re-
vertido posteriormenteecapaz
de gerarimplicações ao longode
todaavidadoindivíduo.Porisso,
Naercio, tambémintegrantedo
Núcleo Ciência pela Infância
(NCPI),defendeumprogramade
renda básica focalizadonas
crianças.Mas, enquantodurar o
isolamento socialno país, opro-
gramade auxílio emergencial
precisacontinuar, mesmocom
problemas,dizele.
Simulações feitas por Naercio
no âmbito do Centrode Políticas
PúblicasdoInsperindicamqueo
auxílioseriasuficienteparaate-
nuar o aumento da pobreza.
“Semoprograma, teríamosuma
tragédia, milhões de famílias
perderiam renda. Ele também
aliviaimpactos recessivosda cri-
se, porqueessasfamíliasman-
têm os pequenosnegóciosgiran-
do”,dizoespecialista.
Como o programa precisou ser
implementado rapidamente, po-
rém, há falhas de execução econ-
troleque abrem espaçopara frau-
des. “Acho que ele deve continuar
por alguns mesesaté o fimdo pe-
ríodode isolamento,mas não tem
comomanter parasempre, por-
que é muito caro e tem problemas
de focalização.” O governo estuda
estenderopagamento, de R$ 600
por pessoafeito por três meses até
julho, por maisdois meses,mas
com valormenor, talvez de R$ 300,
montante considerado adequado
peloprofessordoInsper.
Passadaessa fase transitória,o
governodeveria adotarumpro-
grama sistemático de transferên-
cia de rendapara famílias com
crianças, diz. Pela proposta de
Naercio,integrantes do Bolsa Fa-
míliareceberiam um adicionalde
cercadeR$800porcriançadezero
a seis anos (a chamada primeira

infância). Cercade 25% das crian-
çasnessafaixa etárianopaísvivem
em domicílios pobres,levando em
consideração aPnad Contínuade
2019easdiferenças regionais de
custo de vida. “Masaí tem que me-
lhorarafocalizaçãodoBolsaFamí-
lia, não tantoemtermosde quem
nãodeveriareceber—queexistem,
mas são poucos —, mas de colocar
para dentro todo mundoque pre-
cisa, os 'invisíveis', os informais
quenãoestavamnocadastro.”
A pandemia deu novofôlego às
discussões sobre a criação de uma
renda básica no Brasil. Alguns
economistas sugerem—eo pró-
prio governodiz estudar—auni-
ficaçãode mecanismosde prote-
ção socialjá existentes, comoBol-
sa Família, Benefíciode Prestação
Continuada (BPC)e abono sala-
rial. No modelo de Naercio, oBol-
sa Família émantido. “Acho que
assimébem focalizadoereduz
bastante a pobreza entre as crian-
ças, que é onde você tem que agir
com maisforça, pelos problemas
de desenvolvimento infantil.”

em dois cômodos,com violência
doméstica,problemasde renda,
de trabalho, podemosimaginar
queascriançassedesenvolvendo
nesseambiente—sem apoiodo
Estratégiade Saúdeda Família
[programado SUS],sem aulase
merendaescolar —estariamsu-
jeitasa reflexos em termosde de-
senvolvimentocerebral.E não é
só isso, a própriacuriosidade por
objetos, odesenvolvimento mo-
tor,se tem muitagentena casa,
em um ambiente que não ésau-
dável, podeprejudicarquestões
básicas,dafala,doandar”, diz.
Essa“geraçãocoronavírus”,co-
mo ele chama,tenderáater mais
problemasaolongodavidae,co-
mo as dificuldadescitadasafe-
tam maisas famíliasmaispo-
bres,as desigualdades se apro-
fundariam.“Essasdiferenças que
aparecem dificilmentesão rever-
tidas.Essa desigualdadeque está
surgindo agora, não tantode
rendaepobreza,masdeaprendi-
zadoe de desenvolvimentoin-
fantil,tendeaprosseguireseam-
pliaraolongodavida”, afirma.
Ele não se diz favorável auma
rendabásicauniversal“porque
sairiamuito caro eteria que
transferirpouco dinheiropor fa-
mília”, dificultandoocombateà
pobrezareal. Naercio estimaque
onovo programa exigiria R$ 80
bilhões por ano —praticamente
o valorque ogovernojá desem-
bolsou com quasetrês mesesde
auxílioemergencial. “Nãoéuma
coisainalcançável para diminuir
muitoapobrezaentreas crian-
ças. Se você quiserelevarpara 12
anostambémé recomendável,
mas vai custarmais.Éessencial
manteraresponsabilidadefiscal.
Tudooquegastarvocêtemdeter
umafontederecursos.”
Na propostade Naercio, os no-
vos gastos seriamcobertos por
mudanças tributárias,como ofim
dos descontos no Imposto de
Rendadapessoa físicapara des-
pesasdesaúde eeducação,por
exemplo. Além disso, ele defende
a criaçãode umanova alíquota,
de 35%,para os maisricose tam-
bém que todas as rendas das pes-
soas sejamtributadas pelaalíquo-
ta da respectiva faixa, inclusivelu-
cros, dividendos,heranças, receita
de empresa do Simples etc. “Essa é
a maneira mais justa. Aumentaar-
recadação, é progressivo e ajuda a
financiar o programa.”
O“problemade focalização”
—isto é, atingir o público visado

SaídadeBolsonaro mudaria muito poucoo país, avalia Maxwell


RodrigoCarro
Do Rio

Um possívelimpeachment do
presidente Jair Bolsonaro mudaria
muito pouco opaís, na visão do
brasilianista britânico Kenneth
Maxwell,queparticipoudeLivedo
Valorna sexta-feira. Não só por-
que um general da reserva —ovi-
ce-presidenteHamiltonMourão—
assumiria o cargo, mas também
porque oBrasil carece de novasli-
deranças com o mesmopeso de fi-
guras-chave da políticabrasileira
nasúltimasdécadas.
“Vamosveroquevaiacontecer
na próximaeleição, mas o pro-
blemaéque aindatemosesses
‘velhos’que devemser jogados
fora,aposentados, como[os ex-
presidentes] Lula e Fernando
Henrique Cardoso.Eles aindaes-
tão brigandonas suas antigaslu-
tas”, afirmouoex-professor de
HarvardeColumbia.
O historiador britânico reco-
nheceuque não é fácil encontrar
substitutosparaessaslideran-
ças. “Precisamos de algumasno-
vas pessoas.Mas de ondevêm
essasnovaspessoas?Da banca-
da da bala?Da bancadaevangé-
lica?Eu não sei. Não tenhores-
postaparaessesproblemas.Só

possodizerque são problemas
enormes”, afirmou ele.
Maxwellnão acreditaque Bol-
sonarová sofrerum impeach-
ment.“Se houverumimpeach-
mentdo Bolsonaro,oque vai

acontecer? Um generalvai ser o
próximopresidentedo Brasil”,
acrescentou. Para ele, um gover-
no liderado por Mourãopoderia
ser mais“sossegado” em alguns
aspectos. Mas não representaria

uma guinada,por exemplo, com
relaçãoàpreservação da Amazo-
nia. O historiadorse dissepessi-
mistacom relaçãoao futuroime-
diatodo país: “Os problemassão
muitograves e aliderançaéex-
tremamenteincapaz.”
Na análise do fundador do
Programade EstudosBrasileiros
da UniversidadeHarvard,oBra-
sil perdeucompletamente seu
poderde convencimento —o
chamado soft power. “O soft
powerdesapareceu.O governo
Lula teve ligaçõescoma África.
Foiumgovernoque fez muitos
investimentos em naçõescomo
Angolaeoutrospaísesde língua
portuguesa na África.Isso tudo
desapareceu agorae a ligação é
muitocomos EstadosUnidos,
com o [presidente Donald]
Trump”, resumiuMaxwell.
Um dos aspectosque ohisto-
riador considera preocupante
dentroda política,no Brasile
em outrospaíses,é oque ele
classifica comouma“subversão
interna”. Governantes que estão
no poderforameleitosdemo-
craticamente e agem interna-
mentepara minaras instituições
democráticas. Como exemplo,
ele mencionou—além dos pre-
sidentesBolsonaroeTrump —o

primeiro-ministrodo ReinoUni-
do, BorisJohnson.
Maxwellvê com preocupação
o apoio de gruposdentro do
CongressoNacionala iniciativas
contraa democraciabrasileira.
Comopartedessesuportepolíti-
co,obrasilianistacita as banca-
das evangélica, da bala(arma-
mentista)e “do boi” (proprietá-
rios rurais).
Para ele, oBrasil enfrentacri-
ses simultâneasem quatrofren-
tes: política, econômica,sanitá-
ria ecultural.“O Brasilde praias,
de sol, de música.Há um tipo de
guerraentreisso eum novoBra-
sil”,disse obrasilianistadurante
atransmissão via internet,desta-
candoopeso dos evangélicos em
termospolíticoseculturais.
“No CongressoNacional,por
exemplo,esses gruposque estão
apoiandoo Bolsonarosão um
novoBrasil.Um Brasilque está
envolvidoem guerras culturais e
políticas”,afirmou.
Para entenderesse novopaís,
são necessários novospensado-
res, argumentouohistoriador
britânico. “Precisamos de uma
novainterpretaçãodo Brasil.Es-
tamosfalandoaindade Gilberto
Freyre,de Caio PradoJúnior”,
disseMaxwell,citandoautores

de obrasclássicasparaoenten-
dimentode um Brasilque —re-
cordouele —aindaera eminen-
tementerural.Fenômenoscomo
a urbanização, a favelizaçãoe o
surgimento de novas tecnolo-
gias de comunicação —entre
outros—demandamumanova
interpretaçãoda sociedadebra-
sileira,argumentou.
Perguntadose há prejuízopa-
ra aimagemdo país no exterior,
obrasilianista afirmou que o
desmatamentoda Amazôniaes-
tátendoumpesonegativomuito
grande,mas lembrouque o pro-
blemada destruiçãoda floresta
estálongedesernovo.
“O grandeproblemado Brasil
não é novo:oproblemado meio
ambiente”,afirmou.Ele lembrou
que adiscussão sobreodesmata-
mentona Amazôniase interna-
cionalizouaindanos anos1980,
comoassassinatodoseringueiro
ChicoMendes.
Oproblemada derrubadada
florestatropicalcontinualá, fri-
sou o historiador, mas ganhou
novoscontornospelaproximi-
dadede Jair Bolsonarocom o
presidentedos EstadosUnidos,
DonaldTrump, etambémcom
“grandes produtores agrícolas,
da agroindústria”.

—deprogramasdo tiposeria
enfrentadounindotecnologiaà
experiênciade órgãosdo gover-
no. Naerciodiz que o próprio
aplicativodo auxílioemergen-
cial poderia ser adaptado.Nolu-
gar do CadastroÚnico, as famí-
lia entrariamno aplicativoefa-
riamumadeclaraçãomensalde
renda,empregoe ativos,de for-
ma similarao IR anual.“Você te-
ria uma base de dadosde acom-
panhamento mensal de todasas
pessoasmaisvulneráveis e, as-
sim que elas entrassemna po-
breza,receberiamos benefícios
automaticamente.Se ela sair da
pobreza,aí teriaum períodode
transição, em que,aos poucos,
você vai diminuindo o valor.”
Na concepçãode Naercio,o
aplicativo usaria, por exemplo,
biometria.“A pessoaabrecomadi-
gital, são checadas as informações
comoCPF, bate comas bases do
governo, com sistemabancário ea
pessoavai autodeclarando. Aprin-
cípio,vocêconfianela,eaídepoiso
governopromovechecagens, co-

mo aReceita Federal já faz. Quan-
do oisolamento acabar,você pode
sortear famílias (umaamostra pe-
quena)evisitar,usarosCRAS[Cen-
trodeReferênciadeAssistênciaSo-
cial] e ir descobrindo os proble-
mas.Vaiserdifícilnocomeço,éum
processo lento, comofoi opróprio
CadastroÚnico”,elelembra.
Naercio se preocupa também
com os jovens. Os seus trabalhos
apontam que,quandoojovem
chega ao mercadode trabalho na
crise, achance de ele ter salários
baixos ou ficar desempregadoau-
mentadurante toda a vida. “Estu-
dos em outros paísesmostram, in-
clusive, aumento na probabilida-
dedeeleentrarparaocrime.”
Para quem concluiu o ensino
médio,ou atéofundamental, e
estáentrando no mercado de tra-
balho em meio à pandemia,asi-
tuaçãoéc rítica. “A únicaoportu-
nidadeécom entregas domicilia-
res, esseéoemprego disponível
para jovens pobres. Isso restringe
apossibilidadedeeleadquirirex-
periênciaedecidir oque gostade

fazer, ondea sua produtividadeé
maior”, afirma,reforçando quea
leituranãoédeterminista.
Sem experiência, mas ainda
precisandotrabalhar, porém,a
tendênciaéqueojovemcontinue
em uma trajetória de baixa quali-
ficação. “É uma geração que pode
ter perdas permanentes de renda
e aumentos de desigualdade,
porquenãoafetaosjovensdasfa-
mílias ricastantoquanto os das
maispobres”,diz.Eleobservaque
jovens commelhores condições
financeiras e de formaçãotêm
mais chance de manter uma edu-
caçãooutrabalhoadistância.
Emtermosdepolíticaspúblicas,
Naercio diz que, infelizmente, há
poucoase fazer.“Avaliações bem
feitas mostram que cursos de qua-
lificação profissional têm impacto
muito reduzido sobre empregoe
remuneração e os recursos seriam
maisbemaplicadosse gastos na
primeira infância. Somenteuma
recuperação econômica com gera-
ção de empregos poderá atenuar
umpoucoessaperdaderenda.”

‘Desigualdade que surge
agora de aprendizadoe
desenvolvimento infantil
tende a prosseguire se
ampliarao longo da vida’

Na primeira infância, existem
“janelas de oportunidade”para o
desenvolvimento de certas habi-
lidadesemocionais e cognitivas,
que, se perdidas, tornammais di-
fícil esse processo, explica Naer-
cio. O pesquisador cita estudos
que mostram que,se amulher
passa por um estresse muito
grandenagravidez,comoaperda
de uma pessoa próxima, aumen-
tam as chances de o bebê nascer
prematuroeterproblemasdede-
senvolvimento posteriormente
—oque pode afetar,por exem-
plo,seudesempenhoemprovas.
“Se a mãeestá passando por
um estresseterrívelagora,de fi-
caremcasa,perderrenda,perder
emprego, com medode ser con-
tagiadapela doença,podemos
imaginarefeitossimilares”,diz.
Sobrecrianças um poucomais
velhas,elemencionaoutrosestu-
dos apontando que situaçõesex-
tremas de negligência podem
prejudicar o desenvolvimento
cerebral. “Acho que não chegaa
tantoaqui,mas,se vocêpensar
em seis,sete pessoasmorando

LEO PINHEIRO/VALOR

Maxwell: Brasilprecisadenovos pensadores para entendero novopaís

By_Lu*Ch@Qu£

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