Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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10 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


As cidades secretas da


pesquisa nuclear soviética


Da bomba H à conquista espacial, a maioria dos grandes programas tecnológicos


soviéticos surgiu entre os muros de cidades secretas. Cientistas, engenheiros e


operários viviam isolados, em um universo relativamente preservado. Mas, desde


o fim da URSS, essas cidades sofrem para encontrar um novo fôlego. É o caso


de Sarov, um centro de pesquisa nuclear


POR CHRISTOPHE TRONTIN*


UMA COMUNIDADE DE CIENTISTAS À QUAL AS START-UPS DE HOJE NÃO CONSEGUEM SE IGUALAR


T


odo ano, faça chuva ou faça sol,
50 mil peregrinos vêm a Diveie-
vo meditar sobre os passos de
São Serafim (1754-1833). No
meio do bosque, a rocha sobre a qual
o asceta russo passou dias em ora-
ção; um pouco mais adiante, a fonte
gelada onde se pode encher cantis e
garrafas, e o lago adjacente onde os
mais fervorosos se banham; por fim,
a praça da catedral, diante da qual to-
dos fazem o sinal da cruz. No entan-
to, Sarov e seu Mosteiro da Assunção,
historicamente ligados ao santo e si-
tuados a 12 quilômetros de distância,
estão interditados. A cidade, até re-
centemente conhecida pelo código
Arzamas-16, está fechada ao público.
Diveievo é uma cidade cercada
por arame farpado e guardada por
patrulhas militares. Ela foi apagada
dos mapas do país durante o período
soviético, e seus habitantes, escolhi-
dos a dedo, sigilosamente incumbi-
dos de “forjar o escudo atômico do
país” após a Segunda Guerra Mun-
dial. Hoje o sigilo não existe mais, e a
cidade retomou seu nome original,
mas o acesso a ela continua sendo es-
tritamente regulamentado. Apenas
seus habitantes, cerca de 100 mil, e
visitantes previamente autorizados
podem passar pelo posto de controle
na entrada da cidade. Antes de cuidar
de seus afazeres, os habitantes preci-
sam passar seu crachá especial pelo
leitor, digitar um código de seis dígi-
tos e se submeter a uma verificação
de identidade. Os visitantes admiti-
dos precisam deixar nos armários do
posto celulares, câmeras e outros dis-
positivos de comunicação; em segui-
da, são escoltados até o chefe de pro-
tocolo da empresa anfitriã, que se
responsabiliza por seus deslocamen-
tos até que eles saiam da cidade, pelo
mesmo posto de controle, onde seus
bens lhes são devolvidos.
Curiosamente, a Igreja Ortodoxa
aceita de bom grado essas restrições
de acesso ao local de peregrinação.
Em 2007, durante a celebração do se-
xagésimo aniversário da criação da


habitantes na época –, foi retirada da
administração territorial da Mordó-
via e apagada de todos os mapas e do-
cumentos oficiais. Então teve início a
triagem dos habitantes da vila. Aque-
les que trabalhavam na fábrica nº
550, especializada na produção de
obuses, ficaram lá, e os demais foram
realocados pelas autoridades fora da
zona proibida.
Com o af luxo de trabalhadores e
especialistas, a vila evoluiu para uma
pequena cidade: começaram a ser
construídos imóveis residenciais, de-
pois foi surgindo a necessidade de
um hospital, de um estádio, de um
centro cultural, uma biblioteca, um
teatro, um parque. A construção
avançava de maneira aleatória, a to-
que de caixa, sem plano ou projeto.
Para ganhar tempo, parte dos labora-
tórios foi instalada nos prédios do
mosteiro. Entre os trabalhadores em-
pregados no local, havia represen-
tantes do “contingente especial” (co-
mo eram denominados os presos nos
documentos oficiais).
Antes de qualquer recrutamento,
os órgãos de segurança verificavam
os antecedentes do candidato “até a
terceira geração”, fosse ele um enge-
nheiro do gabinete de projeto, o KB-
11, ou um operário designado para
uma das diversas instalações espe-
cializadas. Os funcionários do com-
plexo só podiam sair com permissão
do serviço de segurança. As saídas
por motivos pessoais eram liberadas
a conta-gotas. Férias fora da área
eram proibidas, o que era remediado
com uma compensação salarial.
Grande privilégio na época, as lojas
de Sarov eram bem mais abastecidas
do que as do resto do país.
A cidade recebeu o codinome Ar-
zamas-16. A partir daí, chamá-la pelo
nome tradicional passou a ser consi-
derado divulgação de informações
secretas. A correspondência privada
era feita por meio de uma caixa pos-
tal especial chamada “Moscou Cen-
ter-300”. Além disso, os nomes das
ruas da cidade eram os mesmos de
ruas de Moscou, para que os funcio-
nários da KB-11 eventualmente em
trânsito pudessem passar por contro-
les de identidade sem que o agente
policial desconfiasse de seu verda-
deiro local de residência.
Essa necessidade de sigilo e confi-
namento teve efeitos psicológicos
muito diferentes sobre as pessoas: o
físico Andrei Sakharov, em suas me-
mórias,^1 fala de uma “privação de li-
berdade que pesava sobre ele”. Mas
há quem, ao contrário, elogie a f lexi-
bilidade dos funcionários encarrega-
dos da segurança em casos-limite...^2
A lei do confinamento era dura e, pa-
ra esses engenheiros, Sarov tornara-
-se novamente um mosteiro fechado
ao resto do mundo. “A fé verdadeira

12ª direção do Ministério da Defesa
Soviético, encarregada da energia
nuclear militar, na Igreja de Cristo
Salvador, em Moscou, o presidente
Vladimir Putin falou da reconcilia-
ção ocorrida, em 1990, entre enge-
nheiros militares e autoridades espi-
rituais. Os cientistas nucleares de
Sarov devolveram à Igreja os edifícios
preservados do mosteiro e, em troca,
o patriarca fez de Serafim seu santo
padroeiro!
A história de Sarov, no entanto,
começa sob os auspícios de um regi-
me que valorizava mais o conheci-
mento científico do que os mistérios
da criação. Na Conferência de Yalta,
em fevereiro de 1945, Stalin confes-
sou ao primeiro-ministro britânico,
Winston Churchill, e ao presidente
dos Estados Unidos, Franklin Roose-
velt, seu medo de que os governos de
seus respectivos países acabassem
causando conf litos com a União So-
viética. Ele não imaginava que seus
temores se confirmariam tão cedo:
mal conquistaram Berlim e os Alia-
dos já discutiam a oportunidade de
aproveitar sua superioridade estraté-
gica para acabar com a União Sovié-
tica, consideravelmente enfraqueci-
da pela guerra. Em 16 de julho, a
ameaça ficou mais clara: o Projeto
Manhattan teve sucesso e a primeira

explosão nuclear da história sacudiu
o deserto do Novo México. Em agos-
to, veio a aniquilação de Hiroshima e
Nagasaki, que varreu qualquer possí-
vel dúvida a respeito da determina-
ção dos Estados Unidos em utilizar
esse novo tipo de arma.
O governo soviético encarou o
evento como um aviso direto: em um
momento no qual o país estava enfra-
quecido pelo sacrifício de quase 26
milhões de soviéticos e pela destrui-
ção de sua indústria, a ameaça repre-
sentada pelos aliados de ontem não
lhes parecia menos importante do
que aquela representada, quatro anos
antes, pelos nazistas. Assim, o Con-
selho de Ministros, reunido em 20 de
agosto de 1945, tomou duas resolu-
ções históricas: investir em pesquisa
para restabelecer a paridade estraté-
gica com o Ocidente e fazê-lo sob o
máximo sigilo, para o inimigo não
tentar acabar logo com isso.
No final de 1945 teve início a bus-
ca pelo lugar ideal onde centralizar
essas pesquisas ultrassecretas. Após
uma pesquisa bastante longa, o gru-
po de trabalho encarregado de exe-
cutar o projeto, sob a liderança de La-
vrenti Beria, decidiu-se pela vila de
Sarov, localizada 350 quilômetros a
leste de Moscou. Sarov, assim como
outras aldeias e vilas – cerca de 9.
© Yves Alarie/Unsplash

Com a lei do confinamento, Sarov tornara-se outra vez fechada ao resto do mundo
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