Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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12 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


terial físsil (para uso militar e civil), o
reprocessamento de combustíveis, o
desarmamento e o desenvolvimento
de novas armas.
Essas cidades, originalmente pro-
jetadas como simples dormitórios
destinados aos funcionários da “em-
presa-cidade”, que representava qua-
se todo o emprego local, se diversifi-
caram. Surgiram lojas, restaurantes,
cinemas, shopping centers e até
agências imobiliárias e de viagens.
Como as atividades de pesquisa per-
deram sua intensidade com a catás-
trofe econômica pós-soviética, a for-
ça de trabalho migrou para empregos
civis mais lucrativos. Os serviços pú-
blicos (fornecimento de energia, ges-
tão da água, transporte público), as-
sim como as instalações de férias,
culturais e esportivas, agora são de
responsabilidade do município ou fo-
ram transferidos para o setor priva-
do. Até as cidades científicas, que
mantiveram o status de cidades fe-
chadas, se normalizaram, mantendo,
porém, seu particularismo cultural.
Proponha a abertura da cidade a
um morador de Sarov e ele logo res-
ponderá: “Jamais!”. Embora hoje as
vantagens dos tempos soviéticos se-
jam coisa do passado, mesmo que o
sigilo não exista mais e todos possam
se comunicar com o resto do mundo,
os habitantes das cidades fechadas
gostam de se manter entre os seus.
“Os veteranos da fase heroica parti-
ram para um mundo melhor, mas a
maioria de seus filhos e netos ficou
por aqui. Metade deles trabalha em
empresas-cidades, onde ‘dinastias”
de pesquisadores e engenheiros
atuam em benefício do progresso
técnico em vários setores, civis e mi-
litares. Modernizados, os institutos
de pesquisa atômica e as plantas de
condicionamento e reprocessamento
de combustível físsil continuam sua
busca pela “energia atômica civil lim-
pa”. Mesmo que esse ideal não seja al-
cançado, pelo menos eles agora ope-


dora de start-ups. Às vezes apoiados
por institutos de pesquisa, às vezes
baseados em financiamento público-
-privado, de meados da década de
1990 para cá esses “tecnoparques”
brotaram como cogumelos depois da
chuva. No final de 2019, eles eram
169, oferecendo a empreendedores
criativos um ambiente considerado
favorável ao desenvolvimento de seu
projeto. Porém, como observa ano
após ano a associação Technoparks,
a taxa de sucesso das start-ups per-
manece bastante baixa (27% das em-
presas sobrevivem ao fim de seu pe-
ríodo de incubação, contra 87% nos
Estados Unidos e 88% na Europa).
Talvez seja um efeito da lenda, às ve-
zes idealizada na Rússia, da start-up
iniciada em uma garagem por peque-
nos gênios desconhecidos prestes a
revolucionar o mundo. É claro que
Bill Gates, Steve Jobs e outros Mark
Zuckerbergs não desenvolveram as
tecnologias cuja promoção assegura-
ram de maneira brilhante. Porque o
ingrediente chave do sucesso – é o
que nos lembra a história das cidades
fechadas, assim como a do Vale do Si-
lício ou do MIT – não é a garagem,
mas uma pesquisa básica de longo
prazo financiada com fundos públi-
cos, o exato oposto desse enxame de
tentativas desordenadas.

*Christophe Trontin é jornalista.

1 Andrey Sakharov, Souvenirs [Memórias], Alfa-
-Kniga, Moscou, 2019 (edição original: 1978).
2 V. I. Juchkine e A. N. Tkatchenko, citados por
Vladimir Matyushkin, A vida cotidiana em Ar-
zamas-16 (em russo), edições Molodaya
Gvardia, Moscou, 2008.
3 Yuri Khariton e Yuri Smirnov, Mythes et réalités
du projet atomique soviétique, Arzamas-
[Mitos e realidades do projeto atômico sovié-
tico, Arzamas-16], VNIIEF (Instituto Pan-Rus-
so de Pesquisa Científica em Física Experi-
mental), 1994.
4 Yuri Fyodorov, “Le Goulag atomique” [O gulag
atômico], Tradition Russe (jornal on-line), Pra-
ga, 30 set. 2015.
5 Vladimir Matyushkin, op. cit.
6 Fonte: Goskomstat.
7 Fonte: Rosstat, Faikov.

ram sob o controle da Agência
Internacional de Energia Atômica
(AIEA) e de acordo com padrões mui-
to diferentes daqueles adotados nos
primórdios, quando o rio era consi-
derado a melhor forma de se livrar de
materiais perigosos.

MULTIPLICAÇÃO
DOS TECNOPARQUES
A outra metade encontrou trabalho
nas várias start-ups e empresas sub-
contratadas pela companhia princi-
pal. Em Sarov, por exemplo, a incuba-
dora Binar hospeda há quinze anos
os mais diversos projetos de alta tec-
nologia: lentes intraoculares, instru-
mentos de medição sem contato de
nivelamento de chapas na saída do
laminador, sensores de segurança
para centrais nucleares. O nível de
estudos significativamente mais ele-
vado do que a média nacional, com-
binado a uma atmosfera serena e es-
tudiosa da cidade confinada, bem
como a proximidade de empresas ul-
traespecializadas, tudo isso favorece
a proliferação de projetos de alta tec-
nologia. Isso significa ainda uma ta-
xa de desemprego menor que a de ou-
tras cidades de porte semelhante
(4%, contra 6% em escala nacional).^7
Essa subcultura “confinada” tam-
bém é mantida pelo Clube das Cida-
des Fechadas, que organiza inter-
câmbios, estágios e acampamentos
de verão para seus habitantes.
Parte dessas antigas cidades se-
cretas, porém, mudou para o direito
comum, como Obninsk, onde foi de-
senvolvida a primeira usina nuclear
civil, e Dubna, que abriga um acele-
rador de partículas e um centro de
pesquisa de base, ou ainda Zagorsk-7,
cujo centro de pesquisa sobre armas
bacteriológicas foi desmontado; ou
então as cidades que cercam as insta-
lações de pesquisa espacial, retorna-
das em 1986 à “vida civil”. Só conti-
nuam fechadas as cidades ligadas ao
Ministério da Defesa ou à Rosatom,

empresa estatal que reúne o conjunto
das atividades civis atômicas – cerca
de quarenta. Pouco a pouco, o arqui-
pélago da ciência se dissolve.
A Rosatom supervisiona uma dú-
zia de cidades fechadas e seus insti-
tutos de pesquisa, centros de enri-
quecimento e reprocessamento de
combustíveis. No Irã, na Índia, na
China e em Bangladesh, sua carteira
de pedidos excede os US$ 100 bi-
lhões, e ela tem trinta projetos de usi-
nas em construção. No setor espacial,
as tecnologias russas, rústicas porém
robustas, provaram seu valor e repre-
sentam um elo fundamental da coo-
peração internacional concentrada
na Estação Espacial Internacional.
Muitos sistemas, de módulos de se-
gurança a motores, são utilizados há
tempos em foguetes europeus e
norte-americanos.
O balanço de outras tentativas de
avanço tecnológico mais recentes é
menos brilhante, como na área de in-
teligência artificial, supercomputa-
dores, nanotecnologia e pesquisa
médica. Criado em 2011 com fundos
públicos por Anatoly Chubais (um
dos ideólogos da “terapia de choque”
ao estilo russo), a fim de incentivar o
desenvolvimento de tecnologias ba-
seadas em nanopartículas, a empre-
sa estatal Rosnano, por exemplo, não
produziu a revolução tecnológica
anunciada por seus promotores, mas
foi apontada pelo Tribunal de Contas
por obter uma isenção fiscal
injustificada.
A Rússia não seria mais capaz de
realizar as façanhas do programa
científico soviético do pós-guerra,
uma época muito mais difícil e dolo-
rosa que a atual? Teria a transição pa-
ra o capitalismo cortado a tal ponto
suas asas? Tentativas não faltam.
Desde o início do século, cada cidade,
cada região, cada grande empresa
pública que se preze orgulha-se de
ter sua incubadora, seu tecnopolo,
seu centro de pesquisa, sua incuba-

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