14 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020
dos medicamentos passaram a subir,
nas décadas seguintes, começaram a
f lorescer diversos sistemas alternati-
vos mais democráticos, imaginados
em conjunto por agricultores, orga-
nizações sindicais e instituições de
caridade, com um único objetivo:
tornar a assistência médica acessível
às classes trabalhadoras.
Entre as realizações cujo crédito
deve ser dado aos “neopopulistas”,
há uma pela qual tenho um fraco.
Ela nasceu em 1929, em Elk City,
Oklahoma, estado onde as teses po-
pulistas tiveram forte ressonância
no final do século anterior. Trata-se
do estabelecimento de um sistema
cooperativo de saúde no qual cam-
poneses e suas famílias, em troca de
uma pequena taxa anual, tinham
garantia de acesso a médicos, den-
tistas e um hospital local com equi-
pamentos modernos. Os membros
da cooperativa – ou seja, todo mun-
do, mas sobretudo os trabalhadores
da terra – eram responsáveis por ele-
ger seu comitê de gestão e gerenciar
o aspecto econômico.
Esse sistema foi inventado por um
certo Dr. Michael Shadid, que decidiu
montá-lo com a ajuda da seção local
da Farmers Union, uma organização
sindical camponesa. A presença des-
sa entidade confirma a dimensão po-
pulista do projeto, pois ela era uma
descendente mais ou menos direta
do partido criado na década de 1890.
Mas a história pessoal do Dr. Shadid é
ainda mais instrutiva.
Nascido no Líbano, Michael Sha-
did emigrou para os Estados Unidos
em 1898. Desde o início de sua carrei-
ra, ele exerceu a medicina junto a
agricultores que não tinham um tos-
tão. Ele também teve uma breve ade-
são ao Partido Socialista. Apesar de
suas convicções políticas incomuns,
ele não era nada charlatão – pelo con-
trário, suas exigências em matéria de
qualidade do atendimento eram par-
ticularmente altas. Shadid destaca-
va-se de seus pares pela denúncia de
uma prática da medicina que consi-
derava predatória, especialmente
nas pequenas cidades de Oklahoma.
Buscando se distanciar desse mode-
lo, ele se dizia um “médico do povo”^3
capaz de resolver o eterno quebra-ca-
beça dos Estados Unidos, que até ho-
je continua sem solução: cuidados
médicos caros e saúde ruim para a
população. “Em tempos de guerra e
de paz, de crise e de abundância, de
tempestade e de calmaria, há fatos
que não mudam: os pobres adoecem
mais cedo, ficam mais tempo doen-
tes e são os que menos recebem cui-
dados médicos, embora sejam os que
mais precisam. Alguns são pobres
porque estão doentes. Outros estão
doentes porque são pobres”,
escreveu.^4
como todas as tentativas ulteriores de
estabelecer um sistema de saúde real-
mente universal nos Estados Unidos.
Mas foi no Canadá que a guerra da
ciência contra o populismo teve seus
eventos mais explosivos, como nos re-
corda o historiador Robert McMath.^8
Em várias províncias das prada-
rias canadenses, os ecos da revolta
populista norte-americana da déca-
da de 1890 permaneceram por déca-
das. Durante a Grande Depressão, a
personificação política por excelên-
cia dessa tradição foi um partido
agrário radical chamado Co-operati-
ve Commonwealth Federation (CCF,
Federação Cooperativa da Common-
wealth). Em 1944, ele conseguiu uma
vitória esmagadora nas eleições pro-
vinciais de Saskatchewan, formando
então o que a história chamou de “o
primeiro governo socialista da Amé-
rica do Norte”.
Reeleita várias vezes ao longo dos
anos, a CCF fez campanha em 1960
em torno de um projeto de cobertura
universal de saúde para toda a pro-
víncia, saindo mais uma vez vitoriosa
de uma eleição amplamente domina-
da por esse tema. Dois anos depois,
em julho de 1962, o governo local es-
tava pronto para lançar o Medicare,
seu sistema de saúde de pagador úni-
co, ou seja, cujos custos são cobertos
por um único sistema público – o pri-
meiro da nação canadense.
Foi então que a “ciência organiza-
da” lançou sua arma de destruição em
massa. No mesmo dia em que o novo
sistema entrou em vigor, todos os mé-
dicos de Saskatchewan entraram em
greve. Seus efetivos não passavam de
mil pessoas, ainda assim esse foi, em
todo seu esplendor, um “momento
Ayn Rand”, para retomar o nome da fi-
lósofa e romancista do século X X,
apóstola do individualismo, muito
popular nos Estados Unidos.^9 Com es-
sa ação, o 1% dos instruídos e abasta-
dos intimaram o povinho a ficar em
seu lugar e demonstrar respeito.
Essa versão canadense do con-
fronto entre ciência e populismo –
entre um grupo profissional peque-
no, porém prestigiado, e os
trabalhadores de Saskatchewan –
também recorreu a manobras que só
a AMA conhecia. Assim como ela, a
associação de médicos da província
canadense acumulou um enorme
montante por meio da cotização de
seus membros, utilizando-o para fi-
nanciar seus esforços de propaganda.
Não apenas o movimento recebeu
apoio da Câmara de Comércio de
Saskatchewan e outras associações
comerciais, como também a impren-
sa local seguiu seus passos em unís-
sono, bradando contra a difusão do
comunismo e das doenças. Ativistas
de extrema direita também fizeram a
festa, por meio de um coletivo vindo
AMEAÇAS DE REPRESÁLIA
Em outra obra, Shadid afirma agir em
nome do “povo dos Estados Unidos”,
lutando “para escapar à dominação
dos privilégios, que está levando o
país para o caminho da ditadura e do
caos”. Citando essas palavras em um
livro publicado em 1939, o jornalista
James Rorty comentou: “São propos-
tas simples, mais populistas do que
socialistas, que atingiram em cheio
os agricultores de Oklahoma, porque
falavam exatamente daquilo que eles
viviam”.^5
É bastante claro que, quando fala-
va em “privilégios”, Shadid estava
pensando na American Medical As-
sociation (AMA, Associação Médica
Americana), a organização profissio-
nal dos médicos. Seus membros sim-
plesmente declararam guerra a ele
por ter ousado abrir um hospital coo-
perativo, lançando contra ele os es-
tratagemas mais diabólicos. Para
eles, o plano do reformador neopo-
pulista era “imoral”, pois planejava
confiar decisões econômicas a não
iniciados. Após tentar cassar sua li-
cença, a AMA expulsou Shadid de sua
seção local, fazendo-o perder assim
seu seguro de responsabilidade civil.
Ela também conseguiu dissuadir a
maioria dos profissionais que ele ten-
tou contratar de se juntar a ele.
Os comentaristas de hoje certa-
mente descreveriam esse episódio,
com ar de alta gravidade e caretas de
desaprovação, como uma guerra do
populista Shadid contra a ciência.
Mas seria muito mais preciso falar
em uma “guerra da ciência contra o
p o p u l i s m o”.
Essa guerra durou muitos anos, e
a AMA conseguiu combater e enter-
rar, uma após a outra, todas as pro-
postas para democratizar o acesso
aos cuidados de saúde. Seus mem-
bros organizaram, por exemplo, um
boicote a uma fazenda de gado leitei-
ro a fim de induzir uma fundação de
caridade vagamente ligada a ela a en-
cerrar suas pesquisas no campo da
“economia da medicina”, como se
chamava então. O historiador Paul
Starr também conta que, em Washin-
gton, onde uma cooperativa de saúde
semelhante à de Elk City acabara de
surgir, a AMA “ameaçava todos os
médicos envolvidos na iniciativa com
represálias, agia para impedir que
conseguissem consultas ou que pa-
cientes lhes fossem encaminhados
pelos colegas e conseguiu convencer
todos os hospitais do Distrito de Co-
lumbia a lhes negar a prerrogativa de
admissão [isto é, o direito concedido
a um médico, em virtude de sua con-
dição de membro pertencente a um
estabelecimento de saúde, de admitir
um paciente em um hospital ou cen-
tro médico para fornecer-lhe diag-
nóstico ou tratamento]”.^6
Esse ataque rendeu à AMA um
processo baseado na legislação anti-
truste, mas não bastou para fazê-la
parar. Afinal, ela não reunia os me-
lhores especialistas de seu tempo,
que estavam apenas exigindo ser tra-
tados com o respeito que lhes era de-
vido? Seu presidente chegou a ponto
de protestar, em 1938, contra a aber-
tura de uma investigação federal so-
bre a reforma do sistema de saúde.
Ele afirmava que toda a hierarquia
social fica pervertida quando se acei-
ta que beócios peçam alto e bom som
remédios de curandeiros, exigindo
que profissionais os prescrevam. “É
uma prática da medicina que não é
científica nem economicamente ra-
cional”, afirmava com desprezo.
É realmente impressionante o que
a ética profissional é capaz de impe-
dir quando os profissionais sentem
que seu status social está ameaçado.
Reeleito presidente em 1948, após
uma campanha muito mais populis-
ta do que a de Donald Trump em
2016, Harry Truman decidiu concen-
trar seu segundo mandato na cober-
tura universal de saúde. Poucos me-
ses depois de assumir o cargo, ele
apresentou um programa para isso,
louvando as façanhas da medicina
moderna, ao mesmo tempo que des-
tacava que ela havia provocado a dis-
parada dos preços dos medicamen-
tos. “Dessa forma, os cuidados
médicos estão inacessíveis não mais
apenas aos pobres, mas a todos os
grupos de renda, com exceção das
mais elevadas”,^7 declarou em 1949 em
discurso ao Congresso.
O contra-ataque da AMA foi ime-
diato. Criticando o “sistema nocivo,
típico das nações decadentes”, ela ar-
gumentou que o plano de Truman co-
locaria os médicos, representantes
superiormente qualificados de uma
profissão altamente respeitada, sob a
batuta de “uma enorme burocracia de
administradores públicos, funcioná-
rios, contadores e comissões leigas”.
Determinada a impedir esse presi-
dente ignaro, a AMA convocou seus
membros (bastante abastados, em
sua maioria) a contribuir, cobrando
uma cotização excepcional e, assim,
reunindo um fabuloso tesouro de
guerra. Esses fundos lhe permitiram
contratar os serviços de uma agência
californiana chamada Campaigns
Inc., pioneira em comunicação políti-
ca, a quem confiou a missão de liderar
suas forças em campo. Logo o país se
viu afogado em uma avalanche de
panf letos, correspondências e car-
tuns abjetos, os quais sugeriam que o
advento de uma “medicina socializa-
da” significaria o irremediável fim da
liberdade individual.
Por causa desses métodos, que in-
felizmente se tornaram clássicos, o
projeto de Truman fracassou, assim