AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15
do nada, o Keep Our Doctors (KOD,
Manter nossos médicos), que preten-
dia combater o sistema de pagador
único por meio das reuniões públi-
cas, da caça às bruxas e de insinua-
ções racistas – pois o governo neopo-
pulista anunciara sua intenção de
trazer médicos do exterior para subs-
tituir os grevistas.
A questão central, evidentemente,
era a do lugar que os especialistas de-
veriam ocupar em uma democracia.
Os médicos viviam então uma situa-
ção de monopólio: somente eles deci-
diam sobre a escolha dos tratamen-
tos e seu preço, e só prestavam contas
a seus pares. O projeto da CCF – as-
sim como o do Dr. Shadid e o do pre-
sidente Truman – vinha enfraquecer
sua autoridade, confiando parte dela
aos cidadãos comuns. Na época, um
repórter do Washington Post obser-
vou: “Os médicos são os ‘sumos sa-
cerdotes’ de nosso tempo e, como tal,
não têm o hábito de receber ordens
do governo”.
Convocado a mediar a controvér-
sia, o barão Taylor, médico e político
britânico, resumiu os fatos em ter-
mos quase clínicos. A AMA, escreveu
ele em 1974, estava “em uma oposição
histérica a qualquer forma de seguro-
-saúde público, empenhando-se, não
sem sucesso, para transmitir essa
histeria aos médicos e à opinião pú-
blica de Saskatchewan”.^10
O diagnóstico foi preciso, para di-
zer o mínimo: uma associação pro-
fissional havia deliberadamente es-
palhado histeria pelas pradarias
canadenses. O resultado foi um ata-
que de “pavor democrático”, como
costumo chamar aquilo que se pro-
duz quando os estratos superiores de
uma sociedade se convencem de que
o povo enfurecido coloca em risco
seus privilégios. Essas crises periódi-
cas de histeria têm várias constantes:
a democracia é descrita como uma ti-
rania, as camadas inferiores são criti-
cadas por ousarem se meter em as-
suntos que não compreendem (seja
economia, política externa ou, no ca-
so em questão, medicina) e, claro, a
mídia atua em bloco.
Todos esses ingredientes estavam
presentes no grande pavor democráti-
co de 1896. Naquele ano, a classe do-
minante norte-americana, apoiada
por quase todos os órgãos da impren-
sa, acreditava-se ameaçada por um
proletariado sanguinário que mar-
chava sob a bandeira de William Jen-
nings Bryan, o candidato presidencial
democrata, um homem considerado
radical e ao qual os populistas se uni-
ram. Do alto de suas torres de marfim,
os homens bem educados da virada
do século se espalharam pelos jornais
da Costa Leste para bradar que o mo-
vimento populista não passava de
uma revolta de dementes e imbecis.
Às vezes, o pavor democrático
atinge seu objetivo. Não foi o caso da
grande greve do 1% que incendiou
Saskatchewan em 1962 – seu fracasso
foi, inclusive, retumbante. Se em um
primeiro momento o medo teve seu
efeito, logo a simpatia pela causa dos
médicos arrefeceu, auxiliada pelos
discursos exagerados do campo dos
especialistas – um pastor evangélico
que espalhava a opressão pelas on-
das do rádio chegou a pedir que cor-
resse sangue.^11 A greve terminou em
um mês. Cinco anos depois, todas as
províncias do país tinham um siste-
ma de saúde inspirado no modelo de
Saskatchewan, e o Medicare é até ho-
je uma das realizações sociais das
quais o Canadá mais se orgulha.
Nenhum dos movimentos de re-
forma que acabei de descrever con-
testou a importância da pesquisa
científica ou de qualquer uma de suas
conclusões. Todos esses pensadores
neopopulistas admiravam a medici-
na moderna – eles simplesmente que-
riam torná-la acessível aos mais mo-
destos. Em outras palavras, foram
duas visões da sociedade que entra-
ram em conf lito: privilégio versus
igualdade.
“A questão fundamental do con-
f lito entre o governo e os médicos de
Saskatchewan não é o seguro-saúde
público, mas a democracia”, escreveu
o jornal canadense The Globe and
Mail algumas semanas após o início
da greve. “Cedo ou tarde, não impor-
ta qual seja sua especialidade, o pro-
fissional precisa se submeter ao leigo,
caso contrário a democracia não po-
de funcionar.”
Exatamente! – exclamaram al-
guns –, esse é o grande problema da
democracia: ela dá a esses leigos ig-
norantes poder sobre aqueles que
lhes são superiores. George Sokolsky,
um editorialista norte-americano de
audiência nacional, defendeu ruido-
samente os grevistas de Saskatche-
wan, alegando que eles encarnavam
“a luta dos especialistas em uma épo-
ca na qual prevalece o governo da
multidão”. Anticomunista até a me-
dula, ele pintou um quadro em que
médicos lutavam para manter a cabe-
ça fora da água enquanto o planeta
inteiro se afogava na onda do iguali-
tarismo. “Houve um tempo em que as
pessoas se respeitavam mutuamente
pelo que valiam”, escreveu. “Agora, o
lema parece ter se tornado: ‘Eu valho
tanto quanto você’.” Essa filosofia,
que ele considerava tão falsa quanto
perniciosa, o enfurecia. Embora em
um país como os Estados Unidos to-
dos fossem livres para expressar suas
opiniões, parecia-lhe natural que, à
medida que o mundo se tornasse
mais complexo, “apenas especialistas
pudessem opinar sobre uma gama
cada vez mais ampla de assuntos”.
Sokolsky era um macarthista fer-
voroso que avançava para a direita da
direita. A CCF de Saskatchewan era
um partido agrário e operário à es-
querda. Hoje, o jogo virou, tudo se in-
verteu. O Partido Democrata que ele-
geu Harry Truman agora atende aos
interesses de executivos ricos e gra-
duados. Ele resgata diligentemente
os pequenos gênios de Wall Street.
Obedece escrupulosamente às injun-
ções de economistas que glorificam o
livre-comércio. E, quando seus repre-
sentantes propõem a reforma da saú-
de, não o fazem consultando a base,
mas reunindo especialistas de todos
os setores envolvidos e pedindo que
reorganizem o sistema entre si. De-
pois disso, ficam espantados quando
a opinião pública expressa sua ira.
“NÓS, O POVO”
As forças presentes na cadeia de
atendimento de saúde também mu-
daram. A AMA não é mais o forte ba-
luarte dos profissionais de saúde que
era antes. Na luta para impedir o ad-
vento da cobertura universal, novos
atores – grupos hospitalares, empre-
sas farmacêuticas e companhias de
seguros – conseguiram superá-la em
termos de poder e inf luência, porém
com uma motivação inalterada: hon-
rar o que agora é chamado de “inova-
ção” e os profissionais que estão por
trás dela.
A transformação mais profunda,
porém, diz respeito ao pensamento
de esquerda. A maneira como os au-
toproclamados progressistas usam e
abusam da palavra “populismo”
mostra que eles se voltaram resoluta-
mente contra sua herança democrá-
tica. Agora os ouvimos nos lembrar
das virtudes da censura^12 e evocamos
com nostalgia os felizes dias em que
os patrões escolhiam nossos líderes
para nós. A democracia coloca um
problema, explicam eles, pois permi-
te que o povo ignore a autoridade dos
especialistas. É a essa democracia in-
dócil que devemos a eleição de Trump
e nosso desamparo diante do aqueci-
mento global ou da pandemia de Co-
vid-19. Tudo isso é culpa nossa: o cul-
pado somos “nós, o povo” (palavras
que abrem o preâmbulo da Consti-
tuição dos Estados Unidos).
O cenário político está, portanto,
de ponta-cabeça, mas a luta continua
a mesma. Agora mais ligados à pure-
za moral gelada da esquerda do que
ao anticomunismo dos caipiras da
direita, os especialistas continuam
fulminando os insolentes que ousam
desafiar seu poder. O verdadeiro tó-
pico do debate são seus privilégios, e
todos somos incentivados a nos pros-
trar a seus pés e à marcha cerrada em
defesa de sua causa.
No entanto, deixando de lado as
fantasias egoístas desse politburo
moderno, a velha equação política
ainda se distingue por trás do véu da
suficiência de esquerda. Hoje, o sena-
dor abertamente populista Bernie
Sanders é o mais ardente defensor de
um sistema de saúde universal, en-
quanto os soldados da “ciência orga-
nizada” e do poder privado se empe-
nham sistematicamente em atacar
essa ideia. O populismo não é a últi-
ma descoberta preciosa do mal que
nos afeta; ele é o remédio que pode
nos livrar desse mal.
*Thomas Frank, jornalista e historiador, é
autor de The People, No: A Brief History of
Anti-Populism [O povo, não: uma breve his-
tória do antipopulismo], Metropolitan
Books, Nova York, 2020.
1 Ver Chris Mooney, The Republican War on
Science [A guerra republicana contra a ciên-
cia], Nova York, Basic Books, 2005.
2 Cf. Scott Lehigh, “Time to end populism’s war
on expertise” [É hora de acabar com a guerra
do populismo contra os especialistas], The
Boston Globe, 7 abr. 2020.
3 Cf. Michael A. Shadid, A Doctor for the Peo-
ple: The Autobiography of the Founder of
America’s First Co-operative Hospital [Um
médico para o povo: a autobiografia do funda-
dor do primeiro hospital cooperativo da Amé-
rica], Elk City, Oklahoma, Vanguard Press,
1939.
4 Michael A. Shadid, Doctors of Today and To-
morrow [Médicos de hoje e de amanhã], The
Cooperative League of the USA, Nova York,
1947.
5 James Rorty, American Medicine Mobilizes
[Quando a medicina norte-americana reúne
suas tropas], W.W. Norton, Nova York, 1939.
6 Paul Starr, The Social Transformation of Ame-
rican Medicine. The Rise of a Sovereign Pro-
fession and the Making of a Vast Industry [A
transformação social da medicina dos Esta-
dos Unidos. A ascensão de uma profissão
suprema e a criação de uma vasta indústria],
Basic Books, 2017 (reedição).
7 Harry Truman, “Special message to the Con-
gress on the nation’s health needs” [Mensa-
gem especial ao Congresso sobre as neces-
sidades de saúde da nação], 22 abr. 1949.
8 Robert C. McMath Jr., “Populism in two coun-
tries: Agrarian protest in the Great Plains and
Prairie provinces” [Populismo em dois países:
protesto agrário nas províncias das Grandes
Planícies e das Pradarias], Agricultural His-
tory, v.69, n. 4, outono 1995.
9 Ler François Flahault, “Ni dieu, ni maître, ni
impôt” [Nem deus, nem patrão, nem imposto],
Le Monde Diplomatique, ago. 2008.
10 Citado em Malcolm G. Taylor e Allan Maslove,
Health Insurance and Canadian Public Policy:
The Seven Decisions That Created the Health
Insurance System and Their Outcomes [Se-
guro-saúde e política pública canadense: as
sete decisões que criaram o sistema de segu-
ro-saúde e seus resultados], McGill-Queens
University Press, Montreal, 2009.
11 Gregory P. Marchildon (org.), Making Medica-
re: New Perspectives on the History of Medica-
re in Canada [Criando o Medicare: novas pers-
pectivas sobre a história do seguro-saúde no
Canadá], University of Toronto Press, 2012.
12 Jack Goldsmith e Andrew Keane Woods, “In-
ternet speech will never go back to normal” [O
discurso na internet nunca voltará ao normal],
The Atlantic, Boston, 25 abr. 202
“Os médicos são os ‘su-
mos sacerdotes’ de nosso
tempo e, como tal, não
têm o hábito de receber
ordens do governo”