AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17
AQUECIMENTO GLOBAL AMEAÇA O ABASTECIMENTO DE ÁGUA
A Bolívia enfrenta a
agonia de suas geleiras
Testemunha por excelência da evolução do clima da Terra, a maioria das geleiras
está passando por uma fase de retrocesso. Nos Andes tropicais, esse derretimento
se acelera há trinta anos e coloca em risco a irrigação, a produção de eletricidade
e o fornecimento de água. Grandes metrópoles como La Paz, na Bolívia, veem
uma parte significativa de seus recursos ameaçada
POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL
D
ezenas de milhares de peque-
nos pontos vermelhos cinti-
lam no horizonte: são os tijo-
los de La Paz e de sua vizinha
popular, El Alto. O Monte Chacalta-
ya (5.395 metros) está localizado na
Cordilheira Real, cerca de 30 quilô-
metros ao norte da capital adminis-
trativa da Bolívia. Cem metros abai-
xo do cume, a estrada sinuosa
termina com uma pequena área de
estacionamento com vista para o
Altiplano, o planalto andino. O ven-
to bate em persianas de edifícios
abandonados cujos telhados evo-
cam chalés alpinos. A incongruên-
cia dessa arquitetura no coração
dos Andes lembra ao visitante que,
há apenas uma década, Chacaltaya
abrigava a estação de esqui mais al-
ta do mundo. Enfrentando as cur-
vas fechadas e o soroche (ma l das
montanhas), um público abastado
aproveitava para relaxar na estação
durante o verão: na Bolívia, o inver-
no corresponde à estação seca; é,
portanto, no verão, durante a esta-
ção das chuvas, que a neve cai. Ou
caía...
“Ali havia uma geleira de 15 me-
tros de espessura na década de
1990”, conta desolado Edson Ramí-
rez, apontando para a encosta ro-
chosa onde algumas hastes de metal
- resquícios de um elevador de esqui
- enferrujam. Engenheiro especia-
lista em hidrologia e glaciologia do
Instituto de Hidrologia e Hidráulica
da Universidade Maior de San An-
drés (IHH-UMSA), em La Paz, o pro-
fessor Ramírez monitora as geleiras
andinas tropicais há quase trinta
anos. “Em 2003, preveni que esse
monumento natural de 18 mil anos
poderia desaparecer em 2015. E fui
otimista demais: os últimos peda-
ços derreteram entre 2009 e 2011. É
extremamente preocupante”, suspi-
ra o cientista. De seu passado, Cha-
caltaya conserva apenas o nome,
que significa “ponte de gelo”, na lín-
gua aimará.
CORDILHEIRA PERDEU
37% DE SUA SUPERFÍCIE GLACIAL
Em poucas horas de carro pela Cordi-
lheira Real, chegamos ao sopé da en-
costa oeste de Huayna Potosí. Segun-
do os cálculos dos cientistas, esse
gigante majestoso também está con-
denado. As rochas negras que a cer-
cam, aquecidas pelo sol, aceleram
seu derretimento: “A cada ano, essa
geleira diminui 2 metros de espessu-
ra e recua cerca de 20 metros. Nossos
cálculos mostram que, desde 1980, a
Cordilheira perdeu 37% de sua super-
fície glacial. No entanto, milhões de
bolivianos dependem da sua água”,
explica Ramírez. Na sequência, os
engenheiros Edson Ramírez e Fran-
cisco Rojas seguem para os arredores
de uma fazenda modesta em frente à
geleira, onde instalaram uma estação
hidrometeorológica que monitora a
pluviometria, as temperaturas, a di-
reção e a velocidade do vento. O pró-
prio Rojas fabricou a instalação para
economizar dinheiro: “Com uma im-
pressora 3D, funis e tubos de plástico,
construí 25 dispositivos por um total
de US$ 25 mil. Ou seja, pelo preço de
apenas um, se comprado comercial-
mente”, conta o engenheiro, sorrin-
do. Aos 73 anos, Don Guillermo Aru-
quipa cria lhamas, ovelhas e vacas.
Ele testemunhou as mudanças:
“Quando me mudei para cá com mi-
nha família, em 1974, a geleira chega-
va até o canal que você vê ali. O gelo
estava azul! Nada é o mesmo”, lembra
ele, apontando para uma linha que
divide o horizonte muito mais abaixo
que o limite atual que vemos. O au-
mento da temperatura está mudando
o ecossistema e tem consequências:
“Agora existem muitas lagartas de
uma espécie que nunca vimos antes.
Minhas lhamas adoecem quando co-
mem esses bichos”, completa.
O fazendeiro recebe os visitantes
e oferece um queijo: “Somos bem re-
cebidos. Você só precisa explicar o
que faz e por que faz”, diz Ramírez.
No passado, os povos das montanhas
desconfiavam da presença de mora-
dores da cidade e, sem muita infor-
mação sobre suas intenções, vandali-
zavam instalações científicas. Em
2014, hidrólogos dos quatro países da
Comunidade Andina (Bolívia, Peru,
Equador e Colômbia) realizaram,
com o apoio do Banco Interamerica-
no de Desenvolvimento (BID), um al-
manaque educativo para explicar seu
trabalho e suas abordagens. Hoje, “os
camponeses não vandalizam mais
nossos equipamentos. Pelo contrá-
rio, alguns até nos pedem para insta-
lar sensores: eles querem informa-
ções porque estão preocupados”,
ressalta Ramírez.
A maioria das geleiras do planeta
está se retraindo desde o fim da Pe-
quena Era Glacial, em meados do sé-
culo XIX. A perda de massa se acele-
rou desde o fim dos anos 1970 e, nas
últimas décadas, a evolução desse
processo nos Andes é considerada
sem precedentes desde o início do sé-
culo XVIII.^1 O derretimento nessa re-
gião é um dos mais rápidos observa-
dos no mundo e faz uma das
contribuições mais importantes para
a elevação do nível do mar, afirma
uma equipe de glaciologistas france-
ses.^2 “A perda drástica de geleiras nos
últimos anos coincide com condi-
ções extremamente secas desde 2010
e, em parte, ajudou a mitigar os im-
pactos hidrológicos negativos dessa
seca severa e prolongada”, precisam.
“Na Bolívia, algumas geleiras perde-
ram dois terços de sua massa, ou até
mais desde os anos 1980”, ressalta a
Organização das Nações Unidas para
a Ciência, a Educação e a Cultura
(Unesco), em um atlas dedicado à
questão publicado em dezembro de
2018 por ocasião da conferência so-
bre aquecimento global (COP24) or-
ganizada em Katowice (Polônia).^3
“NINGUÉM ESCUTAVA
OS CAMPONESES”
Esse documento constata que, du-
rante o século X X, o limite chuva/ne-
ve (altitude em que a neve se trans-
forma em chuva) subiu “em média 45
metros” nos Andes tropicais. No fim
do século X XI, a temperatura pode
subir “de 2 a 5 graus”. Espera-se que o
último glacial da Venezuela desapa-
reça “já em 2021”, e é provável que em
2050 permaneçam na região apenas
as geleiras “mais importantes nos pi-
cos mais altos”. Segundo projeções,
“mesmo as menos alarmistas”, as úl-
timas testemunhas da revolução do
clima nos Andes tropicais perderiam
“entre 78% e 97%” de sua massa antes
do fim do século, enquanto represen-
tam 61% da oferta de água de La Paz
em tempos normais e 85% em anos
de estresse hídrico. O “pico hídrico”,
ou seja, o momento em que o volume
de água resultante do derretimento
f lui a jusante, já começou sua inexo-
rável diminuição na maioria dos ca-
sos, alguns inclusive desde a década
de 1980. A situação só deve piorar.
“Essa região montanhosa está pas-
sando por um período de mudanças
sem precedentes”, sublinha a Unes-
co, desenhando um paralelo com o
“colapso da civilização Tiwanaku”
(no século XI, na atual Bolívia), que
“coincidiu com mudanças climáticas
significativas e rápidas”.
Desde os anos 1990 “alertamos as
autoridades, mas na época não havia
senso de urgência”, lembra Edson Ra-
mírez. Especialmente porque, para as
populações que vivem a jusante, a
aceleração do derretimento foi tradu-
zida a curto prazo como um período
de água abundante. Mesmo no início
deste século “ainda era muito difícil
convencer sobre a realidade do aque-
cimento global”, suspira Magali Gar-
cía. Engenheira agrônoma e chefe do
laboratório do Instituto de Pesquisa e
Desenvolvimento sobre Processos
Químicos (Ideproq), da UMSA, ela es-
tuda as consequências do aqueci-
mento global nas práticas agrícolas:
“Os camponeses andinos veem as ge-
leiras recuando e observam também
que a cobertura de nuvens está redu-
zida. Como resultado, o sol é mais for-
te, as chuvas são mais concentradas,
a evaporação é mais rápida, mesmo
quando a quantidade de precipitação
permanece a mesma. Os camponeses
perceberam o que estava acontecen-
do um quarto de século atrás, porque
são confrontados com o clima todos
os dias. Mas ninguém os ouviu, em
particular as elites urbanas”.
O desaparecimento de Chacaltaya
contribuiu para a conscientização.
Diante do óbvio, os quatro países da
Comunidade Andina criaram em
2012 o Projeto de Adaptação ao Im-
pacto da Retração Acelerada de Ge-
leiras Tropicais Andinas (PR A A), cuja
missão consiste em “fortalecer a rede
de vigilância” e “gerar informação
útil para a tomada de decisões”.^4 As