16 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020
CAMPANHA KANAMARI DO VALE DO JAVARI, AMAZÔNIA
Defesa dos indígenas
contra a Covid-
O presidente Jair Bolsonaro demonstra não apenas resistência em adotar medidas
de enfrentamento à pandemia, como também ineficiência e irresponsabilidade.
Em uma cumplicidade perversa, o coronavírus se apresenta como um aliado
poderoso para livrar seu governo da presença de povos indígenas, que, em
sua desrazão, representam um obstáculo ao seu projetoPOR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS E LINO JOÃO DE OLIVEIRA NEVES*A
pandemia de Covid-19 que as-
sola a humanidade atinge gra-
vemente o Brasil, que ocupa a
posição de segundo país em ca-
sos e mortes, números esses que au-
mentam a cada dia. Essa situação já
grave por si mesma fica ainda mais
trágica com a demora e ineficácia das
medidas tomadas pelos órgãos públi-
cos de saúde para o enfrentamento
do coronavírus.
O Brasil, que chegou a ter um siste-
ma de saúde pública forte e estrutura-
do, foi nos últimos governos submeti-
do à aliança entre a irresponsabilidade
social e os interesses privados para os
quais a saúde é apenas mais uma área
de investimento altamente lucrativa.
Como consequência, o Sistema Único
de Saúde, tomado como referência por
vários países, está hoje completamen-
te desestruturado, não atendendo às
necessidades médico-sanitárias nem
sequer em tempos de normalidade,
quanto mais em momentos de crise.
Na questão dos indígenas, além
da sabida morosidade da burocracia
estatal, o Brasil vive sob a égide de
uma política que tem por objetivo eli-
minar os direitos inscritos na Consti-
tuição de 1988 e em acordos interna-
cionais dos quais é signatário.
O presidente Jair Bolsonaro de-
monstra não apenas resistência em
adotar medidas de enfrentamento à
pandemia, como também ineficiên-
cia e irresponsabilidade. Em uma
cumplicidade perversa, o coronaví-
rus se apresenta como um aliado po-
deroso para livrar seu governo da
presença de povos indígenas, que, em
sua desrazão, representam um obstá-
culo ao seu projeto de desenvolvi-
mento de “terra arrasada”.
Como aliado poderoso, e oportu-
no, o coronavírus, em sua fúria des-
trutiva de gentes e culturas, pode
promover a “limpeza das terras indí-
genas”, permitindo que elas sejam fi-
nalmente entregues à exploração ex-
trativista dos recursos naturais e à
expansão do agronegócio.arrecadação de recursos para que
possam continuar nas aldeias duran-
te a pandemia da Covid-19.
Até o momento, o governo brasi-
leiro e a Fundação Nacional do Índio
(Funai) não apresentaram ações
emergenciais e específicas para pro-
teger os habitantes do Vale do Javari.
Então, os próprios povos originários
iniciaram ações para se protegerem
da pandemia. A principal preocupa-
ção é com a disseminação da doença
nas aldeias.
As consequências da crise da Co-
vid-19 se manifestam de diferentes
maneiras nos contextos locais, e as
demandas também são, em muitos
casos, diferentes daquelas dos outros
indígenas.
A Terra Indígena Vale do Javari é
constantemente invadida por caça-
dores e pescadores ilegais, o que po-
tencializa a transmissão do contágio
da Covid-19.
A preocupação também é com o
suprimento de alimentos. Com a
pandemia, muitas famílias para esta-
vam na cidade retornaram para suas
aldeias. Com isso, a demanda por ali-
mento aumentou. Para os que estão
nas aldeias, a urgência é de recurso
financeiro para comprar material
para caça e pesca e combustível para
as embarcações utilizadas em casos
de deslocamentos de urgência. Para
os que continuam na cidade, a neces-
sidade mais urgente são cestas bási-
cas de alimentos, máscaras de prote-
ção e produtos de limpeza e higiene.
O Vale do Javari é uma área de di-
fícil acesso e a cada momento a Co-
vid-19 se alastra mais, podendo ocor-
rer um genocídio, principalmente
dos povos isolados que vivem no
território.
Nós, Kanamari, precisamos de
apoio urgente, tanto para ajudar as
pessoas de nosso povo que estão in-
fectadas como para proteger os povos
isolados.
Fazemos um apelo aos amigos
que desejam colaborar com os povos
indígenas a incluir em suas listas o
Povo Kanamari do Vale do Javari.”COMO AJUDAR
Contatos: +55 97 99166-7595 • W hatsApp:
+55 97 98416-7375 • PayPal: kanamari_
[email protected] • Banco Bradesco- Agência: 0736-6 •Conta-corrente: 0 70 0 6 72-
- Higson Dias Castelo Branco (Presidente da
Associação dos Kanamari do Vale do Javari - AK AVAJA, Amazônia/Brasil) • CPF:
950.139.382-87 • E-mail: akavaja.kana-
[email protected]
*Boaventura de Sousa Santos é diretor
emérito do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra; Lino João de
Oliveira Neves é professor do Departa-
mento de Antropologia da Universidade
Federal do Amazonas (Ufam).A Covid-19 está disseminada por
todos os estados brasileiros. Depois
de tomar as capitais e os centros ur-
banos mais populosos, o coronavírus
avança rápido para o interior. Não
por acaso, as vozes mais responsáveis
alertam para o risco iminente de ge-
nocídio no Brasil. O genocídio é uma
realidade cada vez mais próxima na
medida em que a Covid-19 se espar-
rama pela Amazônia, região onde es-
tá a maioria dos povos indígenas.
Um dos locais mais afetados é a
tríplice fronteira Brasil-Peru-Colôm-
bia, com grande concentração de po-
pulações indígenas de diversas et-
nias. É nessa região que se registra o
maior número de contaminados e o
maior número de óbitos indígenas no
Brasil. É uma área crítica, pois faz li-
mite com o Departamento Amazo-
nas, na Colômbia, e o Departamento
de Loreto, no Peru, locais onde a inci-
dência de Covid-19 está generalizada,
e a propagação, fora de controle.
No lado brasileiro é particular-
mente preocupante a situação no Va-
le do Javari. A Terra Indígena Vale do
Javari é a área indígena com o maior
número dos chamados “povos isola-
dos”, indígenas em isolamento vo-
luntário de todo o mundo.
Sete etnias distintas comparti-
lham o território do Vale do Javari:
cinco povos (Kanamari, Kulina, da fa-
mília linguística Pano, Marubo, Mat-
sés (Mayoruna), Matís), que há cerca
de cinquenta anos mantêm relações
regulares, porém distanciadas, com
segmentos da população regional; e
dois povos de recente contato (Koru-
bo e Tsomhwâk Djapa), que mantêm
relações esporádicas, principalmente
com povos que lhes são aparentados
culturalmente. Além desses, pelo me-
nos dezoito grupos vivem em áreas de
difícil acesso no interior da f loresta.
Existem apenas evidências de sua
presença, mas praticamente nenhu-
ma informação específica, a ser a de
que em período histórico anterior fo-
ram vítimas de violências e, por isso,buscam o isolamento como forma de
sobrevivência.
Reconhecida pelo Estado brasilei-
ro como território de usufruto exclu-
sivo dos povos indígenas – contata-
dos e não – que nela habitam, a Terra
Indígena Vale do Javari é formalmen-
te uma área protegida.
Contudo, assim como acontece
com todas as terras indígenas do Bra-
sil, ameaçadas pela política anti-in-
dígena do governo Bolsonaro, o Vale
do Javari está fragilizado tanto nas
medidas de proteção territorial que
deveriam resguardar sua integridade
territorial contra as investidas de in-
vasores quanto de iniciativa de prote-
ção sanitária para conter o avanço do
coronavírus.
Os Kanamari foram os primeiros
indígenas do Vale do Javari a serem in-
fectados pela Covid-19. Essa contami-
nação se deu por meio de servidores
do Distrito Sanitário Especial Indíge-
na – órgão do Ministério da Saúde res-
ponsável pelo atendimento aos indí-
genas –, que não observaram as
exigências do protocolo de atendi-
mento à saúde e entraram na aldeia
Kanamari sem cumprir o período de
quarentena. Os primeiros casos foram
registrados no dia 6 de junho, e desde
então o contágio só vem aumentando.
Assim como muitos povos em ou-
tras partes do país, cansados de espe-
rar medidas efetivas tomadas pelos
poderes públicos para enfrentar a si-
tuação de contágio e barrar seu avan-
ço, os Kanamari tomaram a iniciativa
de buscar apoios para o tratamento
médico daqueles já contaminados e
para garantir a sobrevivência de suas
populações no período de isolamen-
to social, além de criarem barreiras
sanitárias para impedir que a doença
chegue às suas aldeias. Confira a se-
guir mensagem do povo Kanamari.CAMPANHA KANAMARI
“Os Kanamari (autodenominados
Tüküna), da Terra Indígena Vale do
Javari, lançaram uma campanha de