Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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18 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


geleiras agora são monitoradas por
câmeras, sondas, drones, até com
apoio do satélite boliviano de comu-
nicações Tupac Katari, em homena-
gem a um insurgente aimará do sé-
culo XVIII. Ao mesmo tempo,
autoridades e ONGs sensibilizam a
população sobre as consequências
do aquecimento global para os recur-
sos hídricos.
Apesar disso, as ações vêm com
atraso. Entre novembro de 2016 e
março de 2017, a Bolívia sofreu a pior
seca em um quarto de século: o fenô-
meno, conhecido como El Niño (o
aquecimento de águas superficiais
perto da costa do Pacífico da América
do Sul), provocou uma queda de 40%
na precipitação e um aumento médio
na temperatura de 2 a 3 graus. De fa-
to, as secas são recorrentes na Bolí-
via, após ciclos hidrológicos de seis
anos. Porém, em 2016, pela primeira
vez, a escassez de água afetou não
apenas Cochabamba, Oruro, Potosí e
Sucre, mas também a conurbação La
Paz-El Alto, cuja população, difícil de
registrar pelo censo, é estimada em
mais de 2 milhões de habitantes.
A estação seca, que geralmente
ocorre de abril a setembro, estendeu-
-se naquele ano. A partir de outubro,
os cortes de água foram aumentan-
do: “Ficamos à seca por dias. Não po-
díamos tomar banho nem cozinhar”,
lembra, furioso, um lojista no centro
da cidade. “Em Cochabamba, as pes-
soas estão mais acostumadas às se-
cas, estão mais preparadas e pos-
suem cisternas. Os camponeses
também enfrentaram secas severas
em 1983, 1987 e 2006. Mas os paceños
[os habitantes de La Paz] ficaram de-
samparados”, conta a engenheira
agrícola Magali García. A água é ra-
cionada em 94 bairros, ou um terço
da metrópole, em particular nos dis-
tritos do sul, que são mais ricos. Os
cortes foram, portanto, um verdadei-
ro choque para as classes média e al-
ta, para as quais era natural obter
água ao abrir a torneira. Moradores
percorriam as ruas com recipientes
vazios. Os mais abastados compra-
vam água engarrafada. No campo,
manadas de lhamas morriam de se-
de, arruinando os camponeses. As fé-
rias escolares tiveram de ser anteci-
padas por vários dias, pois a água foi
cortada nas escolas. Houve manifes-
tações de solidariedade entre os mo-
radores, mas também brigas.
Em 21 de novembro de 2016, o pre-
sidente Evo Morales, comparando o
desastre com um terremoto, decre-
tou estado de emergência e mobili-
zou o Exército, enquanto exortava
seus concidadãos a resolver seus pro-
blemas pacientemente: “As soluções
estruturais para a crise exigirão tem-
po”. A água foi requisitada pelas co-
munidades rurais: considerando es-


mento de neve e gelo, escoamento das
chuvas e af loramento de águas sub-
terrâneas. Essas turfeiras são espon-
jas naturais reais, geralmente com
cerca de 10 metros de profundidade,
que armazenam água enquanto fil-
tram sedimentos. Ecossistemas frá-
geis, elas correm o risco de encolher a
longo prazo por causa da redução da
contribuição da água de derretimen-
to de gelo, resultando na dessecação
do solo e em sua degradação, impac-
tando negativamente a biodiversida-
de e, mais preocupante, a capacidade
desse ecossistema de aprisionar o
dióxido de carbono:^9 a liberação des-
se CO^2 pioraria ainda mais o aqueci-
mento. “Os bofedales vão desempe-
nhar o papel de geleiras durante a
estação seca”, alerta Ramírez. Para
preservá-los, a UMSA estuda os ca-
nais pré-colombianos que em alguns
casos ainda existem nos bofedales:
“Esses canais de desvio permitem
modificar a direção da água, garantir
a circulação interna do bofedal e for-
talecer a autoalimentação. Estamos
estudando essas práticas para repli-
cá-las em larga escala dentro de dois
ou três anos”, explica Ramírez.

Os engenheiros agrícolas Miguel
Ángel López e Mauricio Cussi reali-
zam um estudo sobre as consequên-
cias do aquecimento global nas práti-
cas agrícolas para a UMSA. Eles nos
levam à comunidade de Chojñapata,
não muito longe da cidade de Acha-
cachi. Aqui, a uma altitude de mais
de 4 mil metros, algumas dezenas de
famílias aimará cultivam as encostas
acima dos bofedales. O Lago Titicaca
brilha no horizonte. “Os terraços que
podem ser vistos nas encostas têm
mais de mil anos. Eles protegem o so-
lo da erosão”, explica López. As par-
celas são usadas em sistema de rota-
ção para limitar o esgotamento do
solo. Os agrônomos nos apresentam
Don Juan Mamani. Mamani, 70 anos,
criador de lhamas, nasceu aqui, onde
mora com a esposa. Seus dez filhos
partiram “para viver a vida em La
Paz, Chile e Argentina”. Em outubro,
para que as chuvas abundem, “pres-
tamos homenagem a Pachamama
[deusa inca que encarna a Mãe Ter-
ra]. Contornamos o cume três vezes.
De joelhos!”, diz o camponês, apon-
tando para a montanha vizinha com
o queixo. Don Mamani está experi-
mentando o aquecimento diaria-

se recurso como deles, eles exigiram
como contrapartida a construção de
infraestruturas. Sujos pelo transpor-
te de combustíveis, muitos cami-
nhões-pipa não eram adequados:
não existiam veículos apropriados
em todo o país, e a Bolívia aceitou
ajuda da vizinha Argentina. Quando
os caminhões finalmente chegaram,
brigas começaram entre os morado-
res da cidade, que já estavam com os
nervos à f lor da pele.

A crise se trasladou para a arena
política: já em 2000, a privatização do
abastecimento de água havia causa-
do a duplicação de tarifas em Cocha-
bamba, levando a um conf lito social
que foi violentamente reprimido, ra-
zão pela qual o presidente Gonzalo
Sánchez de Lozada fugiu para os Es-
tados Unidos e um de seus ministros
foi condenado em 2018 por um tribu-
nal da Flórida.^5 Após sua eleição em
2006, Morales (Movimento pelo So-
cialismo, MAS) reverteu as privatiza-
ções e criou o Ministério de Meio Am-
biente e Água. A nova Constituição
do Estado Plurinacional da Bolívia,
aprovada por referendo em 2009, vê o
acesso à água como um direito fun-
damental e até como “um marcador
da soberania do povo” (artigo 16, pa-
rágrafo 373). E foi por iniciativa da
Bolívia que a Assembleia Geral das
Nações Unidas aprovou uma resolu-
ção em 28 de julho de 2010 reconhe-
cendo como “fundamental” o “direi-
to à água potável, limpa e segura”.

ESFORÇO PARA SALVAR
AS ZONAS ÚMIDAS
Durante a seca de 2016, entre 3 mil e 5
mil manifestantes de bairros abasta-
dos do sul da metrópole marcharam
contra o governo. A crise acentuou o
divórcio entre o presidente e a classe
média de La Paz, que então o acusava


  • críticas recorrentes nas conversas –
    “de se preocupar apenas com os po-
    bres e os indígenas”.^6 Chefes caem:
    em novembro de 2016, a ministra do
    Meio Ambiente e Água, Alexandra
    Moreira, e outras três altas autorida-
    des não foram apenas demitidas, mas
    também processadas por “descum-
    primento de seu dever” e até “atenta-
    do contra a segurança pública” (os
    processos foram suspensos em maio
    de 2019, pois o Ministério Público foi
    incapaz de provar que havia sido co-
    metido crime).^7
    Em fevereiro de 2017, as autorida-
    des mobilizaram US$ 200 milhões pa-


ra combater a seca e o aquecimento
global. Com a saída do presidente Mo-
rales do poder em novembro de 2019,^8
o futuro da política de água é tão som-
brio quanto o do país: as eleições ge-
rais, programadas para maio de 2020,
foram reagendadas para setembro.
Diretor-geral da Autoridade de
Água Potável e Saneamento entre no-
vembro de 2016 e novembro de 2019,
Victor Hugo Rico Arancibia nos ga-
rantiu, enquanto ainda estava no
cargo, que as autoridades haviam
“aprendido lições” com a crise, crian-
do mecanismos para antecipar riscos
e, se necessário, “mobilizando a defe-
sa civil em cada nível” (municipal,
departamental e estadual). Os planos
de gerenciamento de secas permiti-
riam “identificar a infraestrutura a
ser melhorada ou construída para
atender à crescente demanda”. Desde
a crise, entre 2016 e 2019, três novos
reservatórios foram construídos em
torno de La Paz. Novos poços foram
cavados em El Alto. Os oleodutos fo-
ram reformados e os canais imper-
meabilizados para reduzir vazamen-
tos. No distrito 4 de El Alto, as perdas
por infiltração foram reduzidas de
39,6% para 26,5% do volume trans-
portado. “Precisamos estudar mais
os mecanismos de adaptação às mu-
danças climáticas e estabelecer es-
tratégias de reabilitação diante da
degradação ambiental”, reconhece
Rico Arancibia. Por exemplo, o des-
matamento das últimas décadas no
departamento de La Paz levou à re-
dução dos córregos que alimentam
os lençóis freáticos.
As secas futuras poderão ser ain-
da mais drásticas se o país não puder
mais contar com o derretimento do
gelo, alerta Ramírez, mostrando o
entorno do reservatório de Tuni.
Construído em 1975 a jusante da ge-
leira Huayna Potosí, esse reservatório
de 26 milhões de metros cúbicos
abastece La Paz e El Alto. “Em 2016, a
água resultante do degelo manteve
um nível correto no reservatório:
imagino o desastre em caso de desa-
parecimento da geleira”, cuja expec-
tativa de vida ele estima em “cerca de
sessenta anos”. Os outros reservató-
rios de La Paz e El Alto “não depen-
dem de geleiras, apenas das chuvas
geradas pelas correntes de ar úmidas
das planícies subtropicais vizinhas”,
acrescenta Rico Arancibia, que está
se preparando “para o comporta-
mento climático cada vez mais errá-
tico e inf luenciado pelo aumento glo-
bal das temperaturas”. Em 2018 e
2019, chuvas torrenciais atingiram a
região, causando inundações e desli-
zamentos de terra.
Atualmente, os cientistas andinos
estão trabalhando para salvar os bo-
fedales: zonas úmidas das montanhas
(pântanos) alimentadas pelo derreti-

Em 2018 e 2019,
chuvas torrenciais
atingiram a região,
causando inundações e
deslizamentos de terra

O paradoxo é que, a
curto prazo, o aumento
das temperaturas se
traduz em uma melhoria
na vida cotidiana desses
agricultores andinos
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