Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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20 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


de Antiquários de Saint-Germain-
-des-Prés, que reúne a maioria dos
especialistas nesse mercado. “Essas
obras de arte, que pertencem à he-
rança da humanidade, serão devolvi-
das a quem? Os governos africanos
têm a mesma noção de conservação
do patrimônio que nós? Eles terão o
direito de revendê-las imediatamen-
te?”, indagou. O anúncio das restitui-
ções teve pouco efeito no volume de
vendas, mas Réginald Groux já está
preocupado com as consequências
mais ou menos a longo prazo desse
movimento. “Sem colecionadores,
99% dos objetos na Europa teriam
quase desaparecido, vítimas de igno-
rância, dos cupins e dos autos de fé de
pessoas religiosas”,^3 argumenta o ne-
gociante de arte. Os amadores certa-
mente salvaram objetos, mas alguns
também se aproveitaram de crises,
guerras ou fomes para se apropriar,
por meio de intermediários, de obje-
tos sagrados ou bens arqueológicos.
Longe dessas controvérsias, Béné-
dicte Savoy lamenta que seu relatório
tenha sido mais bem recebido na Ale-
manha do que na França e que a
maioria dos conservadores franceses
não entenda o que está em jogo. “To-
dos os interlocutores que encontra-
mos na África nos disseram que não
se tratava de tirar tudo dos museus
franceses, porque certas peças são
excelentes embaixadoras da cultura
de seus países. Mas eles pedem que
uma parte significativa dessa heran-
ça seja acessível às jovens gerações
africanas, que não podem vir à Euro-
pa, para que possam recarregar suas
baterias, se inspirar e ter como refe-
rência a criatividade das gerações an-
teriores”, explica.
A historiadora da arte Marie-Céci-
le Zinsou – filha de Lionel Zinsou,
banqueiro de investimentos e ex-pri-
meiro-ministro do Benin, próximo a
Macron – criou um museu de arte
contemporânea em Ouidah, uma ci-
dade costeira no sul do país, impor-
tante centro de comércio de escravos
durante o período do comércio trian-
gular. A decoração limpa do estabele-
cimento, uma vila colonial de estilo
afro-brasileiro, hospeda regularmen-
te as obras de artistas africanos con-
temporâneos, das quais muitas fa-
zem parte de suas coleções familiares.
“O retorno dessas obras marca a reto-
mada da dignidade e do orgulho”,
alegra-se a jovem. Em 2006, a Funda-
ção Zinsou, que ela preside, organi-
zou em Cotonou uma exposição dedi-
cada ao rei Béhanzin em colaboração
com o Museu do Quai Branly. A mos-
tra atraiu 275 mil pessoas em três me-
ses. “Um verdadeiro sucesso, mas
muitos beninenses não entenderam
por que os objetos de sua herança ti-
veram de retornar à França no final
da exposição”, observa Zinsou.


devolvê-los imediatamente”, admite
José Pliya, diretor de programa da
Agência Nacional para a Promoção
do Patrimônio e Desenvolvimento do
Turismo (ANPT). “O presidente Talon
é extremamente claro: além do sím-
bolo de reparo e memória recupera-
da, é a dimensão econômica desses
objetos que importa para nós. Eles
devem contribuir para a economia de
nosso país por meio do desenvolvi-
mento de um turismo ambicioso”,
afirma. Para incentivar esse setor
ainda marginal, o chefe de Estado o
integrou a um vasto plano de investi-
mentos intitulado “O Benim Revela-
do”, que inclui, entre outras coisas, o
aprimoramento do patrimônio natu-
ral, o desenvolvimento de locais à
beira-mar, como clubes mediterrâ-
neos, safáris em parques de animais^5
e a criação de ao menos quatro mu-
seus. Mas os recursos financeiros li-
mitados do Estado e o declínio no nú-
mero de turistas após o sequestro de
dois franceses levaram o governo a
rever suas ambições e a abandonar
dois projetos de coleções públicas.
Essa mistura de gêneros surpreende
Didier Houénoudé, diretor do Insti-
tuto Nacional de Artes, Arqueologia e
Cultura da Universidade de Abomei-

“Transferência ou empréstimo, a
médio ou longo prazo, só podemos
esperar passivamente a decisão da
França”, lamenta, em Cotonou, Alain
Godonou, vice-presidente do comitê
encarregado da cooperação museo-
lógica e patrimonial entre França e
Benin. “Para nós, o que permanece
fundamental é que o Benin um dia
recupere o direito à propriedade des-
ses objetos. Quando oficialmente re-
tornarem ao patrimônio nacional,
estejam eles em Paris, Abomei ou Da-
car, continuarão a viajar e serão apre-
sentados em exposições. Mas somos
nós que decidiremos o destino deles”,
acrescenta. Enquanto se aguarda a
devolução dos objetos, é preciso re-
solver a questão dos locais destina-
dos a recebê-los. Em muitos países
africanos, os museus herdados da co-
lonização, especialmente os criados
pelo Instituto Francês da África Ne-
gra (Ifan), não foram mantidos ou,
em vários casos, foram saqueados.
Em 2016, o artista beninense Ro-
muald Hazoumé elaborou uma ava-
liação condenatória do estado dos es-
tabelecimentos em seu país e
denunciou os muitos roubos que so-
freram. “Nossa cultura foi abandona-
da por cinquenta anos”, dizia ofendi-

do.^4 Para ele, o retorno dos 26 objetos
reais ao Benin é “uma falsa boa ideia”:
“Não quero perder essas peças pela
segunda vez”. O destino ideal para
eles deveria ter sido o Museu Histórico
de Abomei, que ocupa os únicos dois
edifícios abertos ao público no vasto
local dos palácios reais de Abomei,
construídos entre os séculos XVII e
XIX por doze reis sucessivos. No início
de 2020, após uma rápida restauração
do local, alguns dos objetos reais fo-
ram novamente exibidos lá, mas uma
grande vitrine permanece desespera-
damente vazia: a que abrigava a gran-
de espada sagrada, símbolo do poder
mágico dos reis durante as guerras,
roubada em 2001 e nunca encontrada.
Tendo sofrido numerosos roubos e vá-
rios incêndios, sem pessoal qualifica-
do, essa instituição oferece poucas ga-
rantias. É outro estabelecimento, que
deveria ter sido erguido no mesmo lo-
cal, que herdará os 26 objetos: o Mu-
seu da Epopeia das Amazonas e dos
Reis do Daomé, financiado em parte
por um empréstimo de 12 milhões de
euros da Agência Francesa de Desen-
volvimento, mas cujo trabalho ainda
não foi iniciado.
“Ficamos surpresos com a decisão
de Emmanuel Macron, que propôs

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A orientação de Macron para devolver as obras de arte aos países africanos despertou a hostilidade dos conservadores
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